A BOLA: o jornal que nunca suspendeu a liberdade
Cândido de Oliveira, um dos três fundadores de A BOLA

A BOLA: o jornal que nunca suspendeu a liberdade

NACIONAL24.04.202409:26

Os jornais desportivos eram em teoria dispensados de censura Estado Novo, porém, impunha regularmente avisos, multas e suspensões. A BOLA fez frente, pôs o dedo na ferida e resistiu

A 22 de junho de 1926, menos de um mês depois do golpe de estado de 28 de maio, o regime autoritário lança um aviso aos jornais portugueses: «Por ordem superior levo ao conhecimento que a partir de hoje é estabelecida a censura à Imprensa, não sendo permitida a saída de qualquer jornal sem que 4 exemplares do mesmo sejam presentes ao Comando-Geral da GNR para aquele fim.»

Não se contentando com esta nova ordem, impôs-se também que todos os jornais e revistas imprimissem a partir de então com o dístico: «Visado pela Censura».

Perante esta nova realidade, o jornalismo em Portugal teve de adaptar-se para garantir a sobrevivência. Apesar de tudo, e em teoria, nem todo o tipo de jornalismo era para ser visado pela censura. De facto, como indicado a 11 de abril de 1933, ficara então estipulado no Decreto de 22:469 que estão «sujeitas a censura prévia as publicações periódicas definidas na lei de imprensa», em específico se «em qualquer delas se versem assuntos de carácter político ou social».

Esta falta de clareza levou a que várias publicações pedissem isenção de censura, incluindo os jornais desportivos, dada a sua temática de publicação. A isenção prevista, contudo, nunca chegou a acontecer, sendo o critério do que é «político» ou «social» algo abrangente na perspetiva dos Serviços de Censura. É então que, devido a uma crescente insatisfação, a 11 de outubro de 1945, na Circular nº 238 (oito meses depois de surgir o jornal A BOLA), fica estipulado pela Direção dos Serviços de Censura que «com o fim de reduzir no mínimo os prejuízos que as intervenções destes Serviços causam às Empresas jornalísticas … ficam dispensados de censura prévia» uma diversidade de temas e assuntos, incluindo «notícias e relatos desportivos».

Vários outros decretos e circulares seriam estabelecidos ao longo dos anos para melhor gerir o jornalismo português, mas os próprios Serviços de Censura nunca viriam a cumprir estas aparentes liberdades. Assim, o jornalismo em Portugal, incluindo A BOLA, continuou a ter que fazer frente ao sistema ditatorial português na sua busca pela verdade.

VISADO PELA CENSURA

O impacto da censura no jornal começou pouco depois do lançamento do primeiro número, a 29 de janeiro de 1945, contando-se mais de 20 incidentes só nos seus primeiros três anos de vida. A censura fazia saber o seu olhar atento sobre A BOLA, como foi o caso do «título suspeito» a 5 de setembro de 1945: «Antes uma má lei que o árbitro»; ou o corte de um artigo a 27 de dezembro de 1947, por se fazer «alusões de aplauso ao Grupo de Futebol Soviético Dínamo». De facto, há neste período vários cortes a artigos que mencionam equipas soviéticas, como foi o caso também a 8 de novembro de 1945 ou a 9 de setembro de 1947. A aversão ao comunismo que existia na ditadura portuguesa estendia-se assim ao futebol, sendo a mera menção aos países soviéticos caso para condenação.

Mas os castigos da censura fizeram-se sentir de uma forma mais profunda quando o jornal pôs o dedo na ferida, como foi o caso do corte parcial a 23 de outubro de 1947 onde se dizia que «grande parte das receitas dos desafios se perde nas alcavalas oficiais», ou a 3 de novembro do mesmo ano, em que se queixava A BOLA da «falta de auxílio do Estado ao futebol, como também dos grandes rendimentos que o mesmo Estado obriga os clubes a entregar-lhe».

Apesar das repreensões dos Serviços de Censura, o jornal continuaria sempre a procurar a verdade desportiva, sofrendo por vezes duros castigos.

‘A BOLA’ SUSPENSA

O artigo que originou a suspensão de A BOLA em 1946

Das várias punições aplicadas pela censura, como avisos e multas, a mais pesada foi sem dúvida a ordem de suspensão de A BOLA, obrigada por lei a parar a sua publicação e a ter, por isso mesmo, graves prejuízos. Aconteceu no seguimento da edição de 25 de março de 1946, sendo então aplicada a suspensão de 30 dias, apesar dos seus justificados protestos. O mais estranho é que este raro e pesado castigo seria aplicado por ocasião de um jogo amigável entre um grupo amador de marinheiros ingleses e um grupo de jogadores profissionais portugueses, onde se encontravam alguns membros da então Seleção Nacional de futebol.

Em antecipação ao jogo, que viria a ter lugar no Estádio Nacional e que aconteceu porque a frota inglesa estava de passagem pelo Tejo, a Federação Portuguesa toma a decisão de parar todos os jogos do campeonato português. Este facto não escapou ao jornal que, após a vitória da equipa portuguesa por 11-1, decide, nas crónicas de Carlos Correia e Cândido de Oliveira, apontar pesadas críticas às condições que deram origem a este jogo amigável sem aparente importância.

Logo no dia seguinte os Serviços de Censura, em carta endereçada ao diretor de A BOLA, anunciam a pena de suspensão de 30 dias por «a circunstância da competição desportiva» constituir parte «do programa oficial das homenagens à esquadra britânica, cuja visita tem um indiscutível carácter de prestígio para Portugal», sendo por isso os comentários «inoportunos e inconvenientes».

O jornal viria então a protestar, apontando que a Federação de Futebol praticara «uma série de atos destinados a convencer o público de que se tratava de um verdadeiro jogo internacional», mas que «o meio desportivo da capital, porém, é já muito esclarecido e, por isso, não se deixou iludir pela errada conduta da Federação» que «pretendera impingir gato por lebre», concluindo por fim que «nenhum outro pensamento houve senão criticar em tom irónico a conduta da Federação».

O jornal voltou a ser publicado sem qualquer menção ao sucedido

Os Serviços de Censura dariam até alguma razão a A BOLA, notando que a sua crítica visava a interrupção «sem necessidade, segundo afirmam, do campeonato nacional, prejudicando assim os clubes, que tiveram de pagar os salários aos seus jogadores, ficando, porém, privados das respetivas receitas» e reconhecendo ainda que «esta é a opinião unânime dos desportistas sobre a ação da Federação, que todos, igualmente, atacam com igual veemência».

Ainda assim, a suspensão estava ordenada e, apesar das dificuldades que o castigo representou, o jornal A BOLA voltaria a publicar-se outra vez a 29 de abril de 1946, não deixando este percalço impedir o seu continuado sucesso.

O sonho do diário data de 1946…

A Comissão de Censura já estava de olho no novo desportivo mesmo antes do lançamento do primeiro número de A BOLA, a 29 de janeiro de 1945, e pediu um grande número de informações: o nome do jornal, a frequência de publicação, o local de impressão, o contrato com a tipografia, a garantia financeira, o nome do proprietário, do diretor e do editor. Mas pediu também: as certidões de nascimento, registo criminal e policial, atestado de residência, certidão de aproveitamento escolar, nomes dos membros da família; entre outras exigências.

De forma a cumprir todas estas e outras obrigações, o dr. Vicente de Melo e o capitão António Ribeiro dos Reis enviam, a 16 de dezembro de 1944, uma carta ao subdiretor dos Serviços de Censura à Imprensa, onde pediam «autorização para a publicação de um novo jornal desportivo, intitulado A BOLA». Nesta carta, assinada pelo chefe de repartição da Direção Geral da Educação Física, Desporto e Saúde Escolar, dizia-se ainda que «esta Direção Geral entende ser vantajosa a publicação de mais um periódico de propaganda desportiva e que os Snrs. dr. Vicente de Melo e capitão António Ribeiro dos Reis são pessoas de reconhecida idoneidade e capazes de contribuírem com esta nova iniciativa para a divulgação dos bons princípios e desenvolvimento do desporto no País».

Eis que a 29 de dezembro, duas semanas mais tarde e quase no virar do ano de 1944, chega a resposta da Direção dos Serviços de Censura, assinada pelo diretor de então, o major Armando Larcher. Nessa carta, o major aponta «nenhuma objeção» à nova publicação, acrescentando ainda que «é de prever que largos benefícios se colham com esta publicação». É endereçada nas semanas seguintes a restante documentação legal para iniciar a impressão de A BOLA, incluindo o contrato inicial com a tipográfica. A impressão custará o «preço semanal mínimo de 500$00 (quinhentos escudos)».

A concorrência

Voltemos a 29 de janeiro de 1945. A BOLA lança o primeiro número. Oito páginas por 1 escudo, dois dias por semana - à segunda-feira para reportagem dos acontecimentos desportivos e à sexta-feira para a análise da situação desportiva nacional. Dois dias para fazer concorrência aos mais importantes desportivos na época: a revista semanal ilustrada Stadium (1932-1951), que saía às quartas-feiras, e o trissemanário Os Sports (1919-1945), publicado às segundas, quartas e sextas-feiras.

Para ganhar o público e fazer frente aos rivais, a 8 março de 1945 A BOLA altera a edição de sexta-feira para quinta-feira, saindo assim um dia antes de Os Sports. Na altura, A BOLA viria a justificar esta mudança como uma resposta às «dificuldades técnicas» na «composição e impressão», assim como a vantagem de na quinta-feira «haver o comboio rápido Porto-Lisboa» que permitia «mais perfeita distribuição do jornal».

A afluência dos leitores ao jornal teria efeito: pouco mais de um mês depois do seu aparecimento, eis então que o histórico Os Sports, que publicava desde 1919 e que dominara até então o panorama nacional de desportivos, anuncia subitamente a sua suspensão, terminando efetivamente a sua publicação a 4 de abril de 1945. Mas tudo isto era apenas uma estratégia e este jornal viria a ressurgir apenas dois dias depois com a mesma direção e frequência de publicação, mas agora com diferente formato e com o novo título - Mundo Desportivo (1945-1980).

Em agosto de 1945, seis meses depois do primeiro número do jornal A BOLA, a detentora do título - a Sociedade Riviarco, Ldª. - decide vender o jornal. Mas para confirmar a venda e assegurar a continuação da publicação era necessário primeiro pedir autorização aos Serviços de Censura, não fosse haver alguma oposição. Assim, a 30 de agosto de 1945, em carta endereçada ao diretor destes serviços, pedia então a nova detentora - a Sociedade Industrial de Imprensa - que «se digne a autorizar a continuação da publicação do jornal bissemanário desportivo A BOLA», juntando a este pedido também a «escritura de compra e título de registo na Conservatória do Registo da Propriedade Literária e Científica».

Em documento assinado pelo Notariado Português da Comarca de Lisboa, indicava-se ainda que a mudança de propriedade do jornal para os administradores da sociedade, João António Gomes de Castro e Luiz Pastor de Macedo, era feita pela quantia de «200 mil escudos» pagos «em dinheiro» e que esta compra continha o direito do respetivo título e mais direitos inerentes a tal publicação.

Perante este anúncio de compra, a autorização dos Serviços de Censura não demoraria a ser consultada e, logo no dia seguinte, a 31 de agosto de 1945, surge então a aprovação numa palavra apenas: «Deferido».

Dado o «assinalado êxito no país» do jornal, os proprietários ganham ambição. Em carta confidencial endereçada ao diretor dos Serviços de Censura, a 16 de março de 1946, pedem ao responsável do regime para «encarar a possibilidade de converter A BOLA em diário» mas «apenas quando as dificuldades de abastecimento de papel o consintam e o acréscimo do movimento desportivo do país o aconselhe».

O projeto de converter o jornal em diário foi logo aceite, ainda que os Serviços de Censura recomendassem que, dado as dificuldades da época, devesse «aguardar oportunidade». O sonho de tornar A BOLA num diário viria, porém, a demorar algum tempo. Quatro anos depois, a 10 junho de 1950, passava a ser um trissemanário, publicando agora também ao sábado. Esta tiragem trissemanal duraria mais 39 anos, passando a publicar-se quatro vezes por semana apenas a partir de 5 março de 1989, na altura também ao domingo. Foi então, por fim, a 10 de fevereiro de 1995, quase 50 anos depois desse projeto inicial, que A BOLA passou finalmente a publicar-se diariamente.

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