Durante os 41 anos em que vigorou o Estado Novo, as conceções de desporto e de atividade física pouco foram fomentadas. Tal teve um impacto direto no desenvolvimento do desporto no país, que ainda hoje se sente
Dizer que a Educação Física (EF) era desvalorizada pelo Estado Novo não é correto, porque esta tinha um objetivo a alcançar. A prática desportiva é que o era, não havia estrutura que a procurasse providenciar ao maior número possível de portugueses, nem interesse em montá-la.
Um estudo de António Gomes Ferreira, professor e investigador da Universidade de Coimbra, intitulado de O ensino da Educação Física em Portugal durante o Estado Novo explica que a EF no regime salazarista «pouco mais conseguiu do que discursos bem-intencionados e medidas legislativas sem grande alcance prático», assumindo-se sim como «um importante pilar da estratégia educativa do regime ditatorial».
Deste modo, A BOLA falou com três personalidades que se destacam no ramo educativo da EF em Portugal para caracterizar a forma como o Estado Novo olhava para a mesma e desvendar os aspetos que mais se alteraram na disciplina nos 50 anos que passaram desde a Revolução. Desde a sua democratização e acessibilidade, mas passando também por questões culturais, que, cinco décadas depois, ainda marcam algumas perceções do povo português em relação à atividade física.
Tradicionalmente separadas dos rapazes, incontáveis foram as raparigas que não seguiram a veia desportiva por questões sociais, estruturais ou culturais, durante o regime salazarista. Mas alguns dos destes problemas marcantes dessa época continuam presentes na atualidade
Desporto de massas
De modo simples, o exercício físico era instrumentalizado pelo Estado Novo para servir um propósito político e não de prática desportiva. Por isso, a atividade mais promovida pelo regime era a ginástica sueca, criada e desenvolvida por Pehr Henrik Ling.
«A ginástica sueca era o que imperava e os professores só tinham de saber sequências de gestos» diz Nuno Ferro, presidente da Sociedade Portuguesa de Educação Física. «O objetivo era impactar a população com demonstrações em grande número, onde as coreografias eram trabalhadas ao milímetro.»
Nuno Fialho, vice-presidente do Conselho Nacional das Associações de Professores de Educação Física, acrescenta que «a ideia era copiar algo que alguém mais importante mandava fazer, era o reforço daquilo que se queria reproduzir na sociedade».
Por isso é que «a EF, como disciplina de currículo, era claramente desvalorizada», continua Nuno Ferro. «A prática de desporto tinha um contexto de abordagem que passava pelo desporto de massas, proporcionado muito pela Mocidade Portuguesa. Estava apenas ao alcance de pessoas mais favorecidas do ponto de vista socioeconómico.»
António Simões recorda a final da Taça de Portugal de 1974, a primeira em democracia; Sporting levantou o troféu, ao bater o Benfica por 2-1 após prolongamento
Ao contrário dos dias de hoje, em que existe EF do 1.º ao 12.º ano do ensino escolar, durante o Estado Novo muitas escolas nem tinham essa disciplina e as que a tinham não a punham em prática com um programa em comum, porque este não existia.
«A disciplina tinha uma característica e um estatuto secundários, os professores de EF recebiam menos do que os outros. Não importava garantir uma prática de estrutura educativa», completa Nuno Ferro.
Desporto e a prática de atividade física está ao alcance de todos, mas o país permanece na cauda dos mais ativos na Europa
Um exemplo disso é o que se viu a 10 de junho de 1944, quando se inaugurou o Estádio Nacional. António Lopes Ribeiro, num filme realizado na época, descreve assim uma demonstração de ginástica que teve lugar no relvado: «3600 filiados da Mocidade Portuguesa, rapazes saudáveis e confiantes, entraram no retângulo verde. Entoaram em conjunto o hino da Mocidade Portuguesa, depois, sob o comando impecável do capitão Marques Pereira, do Instituto Nacional de Educação Física, executaram uma série de exercícios físicos de grande efeito, ao som de uma banda militar.»
Luís Bom, professor e investigador universitário, destaca que estas demonstrações de «educação desportiva, e não física» eram inspiradas no que se fez na Alemanha. «Tem a ver com o controlo do corpo e de inibição de atividades físicas. O regime nazi utilizou a ginástica mecanicista para controlar e regimentar, mais do que uma disciplina educativa. Isso aconteceu em Portugal, em Espanha, uma política repressiva e inibidora, de controlo e limitação, até da imaginação prática das pessoas.»
A ginástica era, por isso, o desporto predileto do regime, ao contrário de jogos e desportos de competição. Como refere o texto de António Gomes Ferreira: «É legítimo supor que modalidades como o atletismo, o voleibol e o basquetebol não tinham a importância que viriam a ganhar.»
A progressiva inclusão e desenvolvimento destas modalidades em Portugal passou por várias correntes de pensamento - e o Estado Novo retirou muita inspiração daquilo que se fazia no estrangeiro, como explica Nuno Ferro. «As correntes foram muito marcadas pelo que veio da Suécia com o Ling, da Alemanha (uma disciplina mais musculada, exigente), até chegar a escola inglesa, mais relacionada com desportos como futebol, ténis e râguebi.»
«A orientação inglesa é que valorizou a inclusão de desportos nos colégios», completa Luís Bom. «É onde nasceu um movimento de desportivização que permitiu que a EF e o desporto se afirmassem como um modelo cultural de referência para a democracia.»
Por este motivo é que, como salienta o professor, com o 25 de Abril, o desporto português pôde evoluir como nunca. «Quanto mais democrático é um sistema, melhores são os campos educativos, desportivos e artísticos. Há um sentimento de igualdade e de respeito pela diferença que forma uma mentalidade democrática.»
Prof. Mário Moniz Pereira - o Superatleta
O Estado Novo não providenciava o acesso à prática desportiva à maior parte dos portugueses, apenas àqueles que tinham maior aptidão.
Mário Moniz Pereira, eternizado como o Sr. Atletismo, também praticou voleibol, andebol, basquetebol e até futebol. Enquanto treinador, ajudou ainda a projetar atletas como Carlos Lopes, Fernando Mamede e os irmão Castro, Domingos e Dionísio.