A Bola de Ouro é do gestor que ninguém conhece fora de campo

INTERNACIONAL28.10.202423:00

O percurso pouco habitual de um jogador que é o oposto do que é o futebolista atual. A anti-estrela, sem redes sociais e com formação superior que jogava em La Liga e morava numa… residência universitária

Se por um acaso anda à procura de uma publicação lamechas, ou mesmo um story, a celebrar a conquista da Bola de Ouro, não vale a penar perder tempo: não vai encontrar. Pelo menos do vencedor do prémio relativo a 2024. É que Rodri nem sequer tem redes sociais.

Sim, pode parecer uma realidade estranha, mas é mesmo assim. E essa é apenas uma das facetas que torna o médio espanhol alguém tão diferente da imagem que temos atualmente das maiores estrelas do futebol mundial. Rodri é o oposto. É a mais pura anti-estrela.

«Não gosto de ser extravagante. A fama não me dá qualquer tipo de satisfação», já repetiu várias vezes o jogador que, fora de campo e longe da vista dos amantes de futebol, ninguém conhece.

Esse detalhe, porém, não é o único que diferencia o novo Bola de Ouro da maioria das estrela do chamado desporto-rei.

Sabia, por exemplo, que o médio do Manchester City é licenciado em Administração e Gestão de empresas? Claro que sabia: diz no título!

O espanhol fez sempre questão de pensar no seu futuro para lá do futebol e foi por isso que apostou na formação académica, que terminou quando já estava em Inglaterra ao serviço dos citizens.

Não deixou a residência universitária que lhe mudou a vida

Mais do que ter concluído o curso, o percurso académico de Rodri diz muito sobre a simplicidade e humildade que os mais próximos tendem a apontar-lhe como característica imutável.

Mas para o explicar é preciso recuar ao início no futebol. Rodrigo Hernández Cascante iniciou a carreira no Rayo Majadahonda, pequeno clube dos arredores de Madrid no qual também despontou Pepe Reina, e onde Rodri tinha como companheiro de equipa Lucas Hernández, atualmente no PSG.

Rodri (ao centro) no Rayo Majadahonda, abraçado a Lucas Hernández (esquerda)

Em 2007, mudou-se para as escolinhas do At. Madrid, onde esteve até 2013. Saiu depois, alegadamente por ser baixo e não muito forte fisicamente, e rumou ao Villarreal, num momento que, partilhou agora, já com a Bola de Ouro na mão, o fez pensar que o seu sonho de ser futebolista ia desvanecer. «Foi o meu pai que me disse que não podia desistir, depois de tudo o que tinha investido. E nesse dia, mudei a minha mentalidade», recordou, emocionado.

Seguiu-se a mudança para o clube do litoral este de Espanha, a mais de 400 quilómetros de casa, onde concluiu a formação futebolística, iniciando ali também o curso superior.

Pouco mais de dois anos depois de ter chegado, Rodri estreou-se na equipa principal em dezembro de 2015, num jogo da Copa do Rei frente ao Huesca, somando um total de seis jogos nessa época.

O médio estava lançado. E na temporada seguinte agarrou o lugar definitivamente. Mas apesar disso, não largou nem os estudos, nem tão pouco… a residência de estudantes onde morava, o que não deixava de espantar os colegas de residência que o viam a jogar futebol na televisão e depois o tinham ali a jogar ping-pong e a cozinhar/jantar ovos mexidos como os demais.

Mas também falamos do mesmo jogador que por essa altura, já a receber um ordenado de jogador de primeira divisão, o carro que comprou foi... um Opel Corsa em segunda mão.

De resto, essa permanência naquele espaço mudou-lhe a vida, afinal foi na residência que conheceu aquela que é ainda a sua namorada, e que é formada em Medicina.

Rodri e Laura na cerimónia da Bola de Ouro (IMAGO)

Regressou ao At. Madrid… e pagou para sair de lá

O crescimento de Rodri no «submarino amarelo» foi rápido e inequívoco. À segunda época, foi o jogador com mais passes feitos no campeonato espanhol e a qualidade demonstrada não deixou dúvidas ao At. Madrid, que foi lá resgatá-lo no verão de 2018. Para isso, pagou 20 milhões pelo passe de um jogador que tinha deixado escapar aos 17 anos a custo zero.

Ah, At. Madrid e 20 milhões? Aí já veio a extravagância!... Nem por sombras. Rodri manteve-se igual. Como se percebe no relato do amigo e companheiro de quarto na residência de estudantes a quem confidenciou sobre o regresso aos colchoneros.

«Vinha de um jogo contra o Barcelona e contou-me que ia voltar ao At. Madrid… enquanto aquecia a pizza que recebia no final dos jogos», lembrou Valentín Henarejos, em reportagem da Marca, em 2018.

No caminho para o topo, que atingiu definitivamente nesta segunda-feira, consta apenas um ano no At. Madrid entre o salto do Villarreal para o Manchester City. Mas um ano que assume ter sido fundamental.

«Simeone ensinou-me aspetos vitais do jogo, principalmente a importância aliar a mentalidade defensiva às minhas capacidades ofensivas, o que me preparou bem para a intensidade da Premier League», explicou numa entrevista à ESPN aquele que nesse ano nos colchoneros foi o jogador com mais recuperações de bola de todo o campeonato.

Ainda assim, o passo que deu foi inesperado. E talvez a única decisão que destoa no perfil que lhe traçam. «Rodri rescindiu unilateralmente o contrato», anunciou com estrondo o At. Madrid, no verão de 2019.

Segundo relatos em Espanha na altura, o médio foi com os representantes legais depositar os 70 milhões de euros da cláusula de rescisão para deixar o clube com o qual tinha mais quatro anos de contrato. Claro que tinha o Manchester City por trás, mas na prática, pagou para sair daquele que já admitiu várias vezes, é o clube do seu coração.

Mas era forma de continuar a evoluir e dar o passo seguinte. Fê-lo a troco de se tornar no jogador mais caro do Man. City até então, destronando Riyad Mahrez.

De lá para cá, tem escrito história. Enquanto mantém a mesma humildade. E continua longe das redes sociais. Ganhou quatro vezes a Premier League. Marcou o golo que deu a primeira Champions ao Manchester City. Ergueu o troféu do Mundial de Clubes. Tornou-se dono de um recorde de 62 jogos seguidos sem perder na Premier League.

O fim do marketing no futebol, ou a exceção à regra?

Um estudo publicado em maio pelo Observatório de Futebol do Centro Internacional de Estudos de Esporte (CIES Football Observatory) apontou Rodri como o jogador com maior impacto na temporada passada, entre 54 ligas do mundo.

Isso excluiu, por exemplo, o título Europeu conquistado por Espanha no verão, prova na qual Rodri foi eleito o melhor jogador. Também não contabilizou a Liga das Nações que venceu no verão de 2023 e na qual também foi eleito o melhor.

Mas tudo isso terá contado, de alguma forma, para a conquista da Bola de Ouro. Algo que nem o próprio Rodri parecia acreditar em setembro, como confessou em entrevista à ESPN.

«Há muito marketing envolvido neste prémio. Cada um deve jogar com as cartas que tem, porque não há hipótese de mudar o jogo. E não deixo que isso me frustre. Espero apenas que na próxima década possamos começar a ver o reconhecimento por jogadores da minha posição e por todos os grandes talentos nas posições defensivas e de meio-campo», declarou.

«No fundo, gostava que aqueles que votam olhassem além das aparências de fama e riqueza e julgassem com base no verdadeiro valor em campo», acrescentou.

Ora, não foi pelo que Rodri exibe nas redes sociais que ele ganhou, aos 28 anos, a Bola de Ouro.

Será o início de uma era, ou a exceção à regra?