30 anos do incrível Leverkusen-Benfica: «Não trocava esse jogo por uma goleada»
Foi a 15 de março de 1994 que ocorreu uma das noites europeias mais exuberantes do Benfica. Toni lembra-se de tudo
Foram oito golos, volte-faces, montanha russa de emoções, uma águia do inferno ao céu, do céu ao inferno e novamente a sorrir após uma gigantesca descarga de adrenalina. Não se tratou de uma final, mas não há benfiquista vivo com memória nessa noite de 15 de março de 1994 que não se lembre do Leverkusen, 4-Benfica, 4 para a segunda mão dos quartos de final da extinta Taça das Taças. Um elogio da loucura recordado a A BOLA por Toni, o treinador à data das águias.
- Passados 30 anos, ainda se lembra de todos os detalhes desse jogo?
- Essa é uma época que tem jogos inesquecíveis: o 3-3 nas Antas logo na primeira jornada, esse 4-4 e os 6-3 em Alvalade. Lembro-me de tudo, claro, de termos ido para a Alemanha com um empate a 1-1, da alternância no marcador, de termos estado a perder por 0-2, passar para 3-2, depois para 3-4 e finalmente o 4-4. Foi um jogo de tanta intensidade, de tantas oportunidades de parte a parte, do grande jogo do Kulkov, sei lá, tanta coisa. É um jogo que nunca mais esquecerei.
- O início da explicação para um jogo tão aberto começa no encontro da primeira mão, na Luz.
- Certo. Só conseguimos o empate mesmo no fim, pelo Isaías. Fomos para lá para marcar porque éramos obrigados a isso para passarmos às meias-finais.
- Mas é fácil recordar os detalhes passados 30 anos?
- Sim. Mas confesso que não me lembrava que já tinham passado 30 anos. Quando preciso vou ao YouTube, nem sequer faço como o meu filho que de tanto andar para trás na cassete VHS já gastou a fita. Mas é fácil lembrar-me de tudo, de termos ido do inferno para o céu e vice-versa. Um ioiô de emoções, inesquecível, é daqueles que fica na memória de todos aqueles que amam o futebol.
- Ainda de recorda da palestra ao intervalo?
- Não me recordo de tudo, mas lembro-me de mostrar à equipa que éramos capazes de passar o Leverkusen. Foi acima de tudo uma mensagem de motivação, quer antes do jogo como durante o intervalo. Apesar de termos em campo uma equipa muito ofensiva tínhamos de manter o equilíbrio tático. Mas a partir de um determinado momento os jogos ganham vida própria. Nós, treinadores, somos atores e o que precisamos nessas alturas é de puxar pelas emoções, apelar ao melhor que os jogadores têm para dar. Recordo-me de lhes dizer, com convicção, ‘vamos ganhar’. Não ganhámos, mas o empate foi como uma vitória. Mas mal sabia que a segunda parte ia ser o que foi.
- Quando a equipa dá a volta para 3-2 vê-se Toni meio sem saber o que dizer, a tentar transmitir a mensagem possível para dentro de campo…
- Naquele momento era difícil. Mas da maneira como as coisas estavam cheirava-me que aquilo não ia ficar por ali. Disse-lhes que aquilo ainda não tinha acabado e de facto não estava…
- O que pode um treinador fazer naqueles momentos?
- É muito difícil porque no espaço de poucos minutos passamos de 3-2 para 3-4 [Kulkov fez o terceiro golo aos 78’, Kirsten assinou o 3-3 aos 80’ e Hapal marcou o quarto aos 82’]. Mas tal como sofremos também soubemos marcar. Lembro-me de o [Dragoslav] Stepanovic [treinador do Leverkusen] afirmar que a equipa dele poderia estar toda a noite a jogar que não iria vencer aquele jogo. E há uma história curiosa com ele…
Eu estava movido a pastilhas, tinha parado de fumar recentemente. Depois voltei, para deixar de vez uns anos depois. Mas teria fumado meio maço naquela hora e meia, à vontade
- Conte...
- Ele foi substituir-me no clube que treinei na China [Shenyang Ginde, hoje Guangzhou City]. Mas não nos chegámos a cruzar. Ele fumava aquelas cigarrilhas, deve ter gastado um maço no jogo. Fiquei de recordação com uma camisola do Leverkusen, mas confesso que entretanto a perdi.
- Por falar em fumar, aquele não foi o jogo ideal para quem tinha parado…
- Claro que não. Eu estava movido a pastilhas, tinha parado recentemente. Depois voltei, para deixar de vez uns anos depois. Mas teria fumado meio maço naquela hora e meia, à vontade.
- Fez alinhar uma equipa muito ofensiva. Hoje seria possível ver o Benfica a jogar com um meio-campo sem um verdadeiro médio defensivo? Kulkov era um 6 que marcou dois golos, Vítor Paneira e Rui Costa eram os outros médios e no ataque tinha João Pinto, Iuran e Isaías.
- O treino evoluiu muito. Nós já trabalhávamos bem naquela altura, mas esta equipa, hoje, seria muito melhor. Nós jogávamos ora em 4x2x3x1 ou num 4x3x3, mas o meio-campo era formado a três. Só em jogos frente ao FC Porto ou Sporting invertíamos o triângulo, jogando com dois médios mais recuados. No resto, jogávamos sempre com dois médios ofensivos, mas sempre na base do equilíbrio, porque em determinados momentos o 6 transformava-se em 8 e vice-versa. Era mais ou menos como no meu tempo de jogador, quando jogava junto do Vítor Martins: quando eu avançava ele recuava e tínhamos Moinhos, Jordão e Nené no ataque, em que cada um fazia os 100 metros em 11 segundos.
- O tal ataque móvel que hoje se fala…
- Exato, e era isso que fazíamos em 1993/1994. Precisava de ter cinco a atacar e cinco a defender. Só apostei num meio-campo com Kulkov, Paneira e Rui Costa porque precisávamos de ganhar ou marcar, se levasse daqui uma vantagem de 2-0 não faria isso.
- Insisto: mesmo tendo de atacar, seria hoje possível vermos o Benfica apresentar uma equipa tão ofensiva numa partida fora de casa nas competições europeias?
- É difícil porque hoje o futebol está diferente. Mas, à época, ao tomar aquela decisão, foi um sinal que transmiti à equipa de que não íamos defender para a Alemanha. De qualquer forma mesmo os jogadores mais ofensivos davam equilíbrio. Isaías fechava bem e Vítor Paneira era muito inteligente a preencher os espaços e compensava o que o Rui [Costa] não defendia. E depois tinha Kulkov, que era um médio muito inteligente.
- Essa filosofia e estratégia eram próprias da época ou também porque era o seu estilo?
- Era uma forma de usarmos o talento que tínhamos, mas eu decidia em função as circunstâncias. No 6-3 de Alvalade, por exemplo, deixei Rui Costa de fora e o meio-campo era formado pelo Abel Xavier e o Schwarz. Tinha músculo, portanto. Mas quando estávamos a perder por 1-2 pus Rui Costa a aquecer, só que entretanto fizemos o 2-2 e o 3-2 e a partir daí o dérbi começou a ficar decidido.
Schwarz tinha uma mentalidade diferente, para ele o treino era algo para levar muito a sério, quando ele sentia que os colegas não estavam a dar o litro fazia umas entradas mais duras só para os acordar
- Ainda se lembra de alguma mensagem especial de um dos seus jogadores?
- Não diria nesse, mas antes do 6-3, quando empatámos 1-1 em casa, frente ao Estrela da Amadora, recordo-me de dois deles vierem ter comigo ao gabinete e dizerem: ‘mister, não se preocupe que vamos ganhar em Alvalade’. Isto serve para dizer que aquele plantel tinha líderes. Voltando ao jogo: quando Abel Xavier faz o 1-2 sentimos que estávamos dentro do jogo e senti que os jogadores estavam a acreditar de que era possível. Mas isto não é basquetebol e houve uma altura em que nós, treinadores, perdemos o controlo, não dava para pedir um desconto de tempo.
O problema é que quando jogavam os três russos [Iuran, Kulkov e Mostovoi] eles jogavam só entre eles, não passavam a bola a ninguém, imagine o João Pinto estar apenas a vê-los jogar
- Falou há pouco em líderes. Quem eram os líderes daquele balneário?
- Mozer era o principal. Depois tínhamos Rui Águas e Schwarz, este com uma mentalidade diferente, para ele o treino era algo para levar muito a sério, quando ele sentia que os colegas não estavam a dar o litro fazia umas entradas mais duras só para os acordar. E tive muita pena por Kulkov, que já não está entre nós. Era um jogador muito inteligente, muito cerebral, tinha uns pés de veludo. Se ele tivesse uma vida consentânea com o de um futebolista profissional tinha sido fabuloso. Porque era um 6 e um 8 de grande qualidade, uma visão de jogo enorme. Dos três russos do plantel, só Mostovoi é que acabou por ter uma grande carreira porque era o único que se cuidava. E no Benfica jogou pouco porque tinha grandes jogadores à frente dele.
- Essa equipa de 1993/1994 foi das melhores do Benfica?
- A de 1988/1989, época em que também conquistei o título, tinha uma boa equipa, mas a de 1994 tinha mais qualidade do ponto de vista individual. Veloso e Schwarz como laterais, sendo que podia usar Schwarz como médio, depois tinha Mozer, Hélder e William como centrais, Rui Costa, Isaías, Iuran, Rui Águas, João Pinto e a formiguinha Ailton. O problema é que quando jogavam os três russos [Iuran, Kulkov e Mostovoi] eles jogavam só entre eles, não passavam a bola a ninguém, imagine o João Pinto estar apenas a vê-los jogar. O problema era as noitadas deles, se os pusesse a jogar isso colocaria em causa a minha autoridade no balneário. Porque os outros jogadores sabiam que eles iam para a noite. Muitas vezes tive de pôr o Kulkov, mesmo quando ele não merecia.
- Mas como qualificaria essa equipa no contexto dos últimos 50 anos do Benfica?
- Ao nível dos tempos daquela equipa de Jorge Jesus que tinha Aimar, Saviola, Cardozo, etc, quando o Benfica voltou a expurgar a mediocridade. Mas a equipa de 1992/1993, em que se incluíam Futre e Paulo Sousa, com mais dois ou três retoques, podia ter sido candidata…
- … a ganhar uma Taça dos Campeões Europeus?
- Havia grandes equipas nessa prova, atenção!
- Mas não havia tanta desigualdade como hoje. O Benfica fora a duas finais em 1988 e 1990 e o FC Porto vencera em 1987.
- Sim. Essa equipa era muito, muito boa. Mas relativamente a essa equipa de Lekerkusen, diria que é uma das quatro melhores do Benfica dos últimos 50 anos.
Kirsten falava muito desse jogo, ainda estava fresco na memória. Ele queria muito vir para o Benfica mas esse era o tempo em que, como eu disse na altura, andávamos a tentar comprar jogadores com sacos de caramelos.
- Preferia jogos como este de Leverkusen ou vencer de goleada?
- Prefiro isto! Ganhar de goleada é mais tranquilo, o jogo está sempre controlado, mas depois de terminado o jogo não há prazer maior que este. É uma felicidade enorme sairmos vencedores de um jogo assim, é uma adrenalina que não temos com uma goleada. Antes de uma partida, se perguntarem a um adepto o que prefere, ele dirá sempre goleada, mas depois de vivida uma experiências destas ele dirá sempre que também prefere esta forma. Porque é isto que fica para a história. Se tivéssemos goleado provavelmente não estaríamos a falar deste jogo, 30 anos depois.
- Quando foi a primeira vez que voltou a falar desse jogo com alguém fora do Benfica?
- Quando fomos a Leverkusen tentar contratar Kirsten para o Benfica. Eu era o diretor desportivo no tempo de Paulo Autuori, fui com um empresário que falava alemão, tínhamos uma folha A4 para ele assinar. Ele falava muito desse jogo, ainda estava fresco na memória. Ele queria muito vir, mas esse era o tempo em que, como eu disse na altura, andávamos a tentar comprar jogadores com sacos de caramelos.
- Não veio Kirsten nem Jardel, veio Pringle.
- Pois, mas na verdade quem eu queria era outro sueco, Blomqvist, que veio a jogar no Milan. Mas isso daria outra conversa.