Espaço Universidade Questão ética, questão legal (artigo de Armando Neves dos Inocentes, 72)
Pessoa amiga fez-nos chegar um vídeo que circula pelas redes sociais. Um vídeo de um desporto de combate… poderá ser um vídeo de ‘professional wrestling’, poderá ser de luta livre olímpica, mas também poderia ser de luta greco-romana, ou de judo, ou de jiu-jitsu, ou de karate… O árbitro dá início ao combate, os competidores vão-se cumprimentar e, neste exacto momento, um deles aplica uma técnica de prisão de pernas ao adversário colocando-o no chão e ganhando assim o combate. Curiosamente o competidor que ganhou o combate foi aquele que avançou com a proposta de cumprimento com toque de mãos aproveitando-se disso para atacar de surpresa. Questão técnica? Sem dúvida, tecnicamente uma boa aplicação. Questão táctica? Sim, uma opção táctica que revela o carácter do competidor. Questão ética? Questão legal?
Sem dúvida que há um aproveitamento técnico nesta acção. O combate inicia-se à voz do árbitro, pelo que tanto a aplicação da técnica como ela própria são perfeitamente legais. Vitória justa? Sim, do ponto de vista legal, não do ponto de vista ético. É uma situação que tem a ver com a falta de cavalheirismo do competidor que distrai o adversário com um pseudo-cumprimento aproveitando-se deste momento para dar início à acção.
Uma acção que nada tem a ver com falta de ‘fair-play’, como muitos vieram reclamar…
Em «A Bola» ‘online’, de 30.04.23, podemos ver um vídeo em que Mvogo, guarda-redes do Lorient, coloca a bola no chão dentro da grande área tencionando marcar um livre indirecto pois tinha ficado com a sensação que o árbitro tinha interrompido o jogo, quando, de repente, Mbappé, que se encontrava perto, dá meia volta e atira a bola para o fundo da baliza. Golo do empate para o Paris Saint-Germain validado pelo árbitro pois este não tinha sancionado qualquer infracção… Legal? Sim! Ético? Não! E mais uma vez, uma acção que nada tem a ver com ausência de ‘fair-play’, como muitos defenderam…
Outro vídeo que circula pelas redes sociais mostra-nos um futebolista percorrendo calmamente a linha de golo da baliza da equipa adversária enquanto o guarda-redes vai fazer a reposição do esférico não se apercebendo da sua presença atrás de si. Ao colocar a bola no chão aquele arranca, domina a bola retirando-a do campo de acção do guarda-redes e marca golo. Legal? Sim! Ético? Não! Falta de ‘fair-play’? Mais uma vez nada a ver com essa noção.
Estes são alguns exemplos, apenas alguns exemplos que observados pelos mais jovens lhes mostram que o oportunismo no desporto é válido e legal. Que por vezes a vitória pode ser obtida a qualquer preço e legalmente. São modelos perigosos… Por que motivo? Porque “quando lei e ética estão em conflito prevalece a lei” como nos diz Ronald Francis (1). De facto, “nem sempre o legal coincide com o justo, e se obedecer à lei é um imperativo cívico, ser justo é um imperativo ético”, como refere João Baptista Magalhães (2). É necessário discutir a ética? Sem dúvida que sim. As campanhas de sensibilização ética no desporto que resultados produziram até agora? Seria conveniente encontrarmos resposta para esta pergunta a não ser que essas mesmas sejam pura e simplesmente estéreis. E recorrendo de novo a Francis, “os argumentos éticos, podem, contudo, formar uma parte significativa da contestação à lei e actuar como forte argumento para a alteração legal.” Têm actuado? A não ser que tenhamos de dar razão a Forrest Atlee, personagem de John Grisham (3) na sua obra “A Convocatória”, quando, ao dirigir-se ao seu irmão Ray lhe diz: “ – Já não há ética, mano. Andas na lua. A ética é para pessoas como tu ensinarem aos alunos que nunca irão usá-la.”
No futsal, recentemente, o Vitória de Santarém encontrava-se em primeiro lugar antes do último jogo do campeonato com 33 golos de vantagem sobre o Mação, ambos com os mesmos pontos. No entanto o Mação conseguiu ultrapassá-lo pois venceu o último jogo contra o Benavente por 60-0 (e sagrar-se campeão distrital embora a Associação de Futebol de Santarém não tenha homologado o resultado e abrindo um processo disciplinar) … enquanto o Vitória venceu o Ribeira Fárrio apenas por 7-5.
No jogo em causa, o Benavente apresentou-se na partida apenas com três jogadores (um guarda-redes e dois jogadores de campo). Alega este clube em comunicado oficial que tinha informado a Associação de Futebol de Santarém (AFS) que só teria três jogadores disponíveis para o encontro, uma vez que o horário da partida tinha sido alterado. E que, “ainda na sequência deste tema, o Benavente questionou a AFS sobre quais as implicações de uma falta de comparência, tendo a AFS respondido apresentando os vários valores de multas que constam no artigo 49º”.
No comunicado oficial do Benavente ainda se pode ler que este "apresentou-se ao jogo com os três jogadores, como tinha sido comunicado à AFS, sendo que no decorrer do jogo o treinador se dirigiu à equipa de arbitragem solicitando que a outra equipa jogasse apenas com três jogadores. Tal facto foi negado pela equipa de arbitragem alegando que não tinham poder para o fazer ficando essa decisão ao critério da equipa adversária". Aqui sim, e caso o treinador do Mação tivesse acedido a esta pretensão e se apresentasse a jogo apenas com três jogadores, existiria uma situação de ‘fair-play’. Porque existindo uma omissão nas regras em relação a essa possível decisão o treinador do Mação procuraria uma certa equidade, tentando adaptar essa omissão existente à situação do momento, pretendendo aplicar um critério de justiça e igualdade, abdicando de uma vantagem.
Portanto, e apesar do processo disciplinar aberto, e estando nós na posse apenas destes elementos, parece-nos que tudo decorreu dentro da legalidade. Mais uma vez se coloca a questão: correu dentro de padrões éticos?
Mas como a memória é curta, e para que a admiração não seja tão grande, aqui ficam alguns resultados parecidos no futebol: 73-0, em Achay, em 1999, no Paraguai; em Calcutá, na Índia, 114-0, em 2002; 55-1 e 61-1, também na Índia, em 2004; 95-0 e 91-1 na Serra Leoa, em 2022.
Olímpio Bento (4) pergunta-nos se “poderá o fair-play ser hoje o princípio moral mais importante do desporto quando o não é da sociedade?” Pelo que nos atrevemos a perguntar: poderá a ética ser o mais importante no desporto quando o não é na sociedade?
(1) Francis, R. D., 2004. “Ética para psicólogos”. Lisboa: Instituto Piaget.
(2) Magalhães, J. B., 2010. “Horizontes da Ética - para uma cidadania responsável”. Porto: Ed. Afrontamento.
(3) Grisham, J., 2004. “A Convocatória”. Lisboa: Círculo de Leitores.
(4) Bento, J. O., 2004. “Desporto – Discurso e Substância”. Porto: Campo das Letras.
Armando Neves dos Inocentes é Mestre em Gestão da Formação Desportiva, licenciado em Ensino de Educação Física, cinto negro 6º dan de Karate-do e treinador de Grau IV.