Espaço Universidade Mais uma crónica... (Artigo de Manuel Sérgio, 381)
Etimologicamente, crónica diz tempo, evoca o deus Cronos que rememorava com sabedoria outros tempos, outras eras. Na minha idade (sou, de facto, um idoso) é de “crónicas” que se fala e que se escreve. Quem, como eu, dedicou uma “vida inteira” (entenda-se o exagero) ao estudo da educação física e do desporto; quem andou principalmente pela Europa e pela América Latina em busca de mais saber, nestas áreas, com certeza que é tentado a escrever muitas crónicas, já que as memórias ramalham, constantemente, na memória.
Entrei, como técnico, em Outubro de 1968, no Fundo de Fomento do Desporto, de que eram figuras cimeiras os Drs. Armando Rocha e Eduardo Trigo: aquele que, nas suas conversas (e comigo eram frequentes) nunca se esquecia de pôr ao sol o seu amor pela sua “alma mater”, a Universidade de Coimbra; este, diretor do Estádio Nacional e pessoa naturalmente fraterna. No Dr. Armando Rocha, admirava, sobretudo, a sua “virtus” para liderar uma área, o desporto, que a classe dominante daqueles anos idos, em Portugal, não mostrava interesse em conhecer e promover. Foi também um Amigo meu e da minha família, que nunca deixarei de relevar. Depois do 25 de Abril, o Alfredo Melo de Carvalho fez um verdadeiro “corte” em relação ao desinteresse que grassava, pelo Portugal “estadonovista”. Foi um trabalho aturado e probo que lançou bases sólidas a muito do que se conseguiu, nos anos subsequentes, nesta área. Não me cabe fazer o inventário de factos históricos, pois que é papel que incumbe aos historiadores, mas hoje não tenho receio em escrever que o Alfredo Melo de Carvalho, diretor-geral dos Desportos, é um dos nomes grandes da história do desporto, no nosso país.
De pronto acrescento, também como diretor-geral, o nome de Arcelino Mirandela da Costa que teve parte ativa na criação, no INEF e no ISEF, de um departamento, acompanhado pelo Jesualdo Ferreira e o Carlos Queirós e o Nelo Vingada, onde o futebol entrou de estudar-se com a seriedade científica possível naquele tempo. Entretanto, no Porto, José Maria Pedroto lançava um aceno de simpatia e avisava; “Faltam 30 metros ao futebol português”. Em tom ameno e sempre irreverente, eu conversava com todos eles, incluindo o Sr. José Maria Pedroto que me apresentou o Prof. José Neto, hoje um “Amigo de todas as horas”. E um estudioso do futebol de persistência, resiliências e generosidade inatacáveis. Mas há um ponto que eu quero realçar, nesta minha crónica: o progresso que o desporto português altamente competitivo atravessa deve-se, indubitavelmente, embora os brados e os protestos que, de quando em vez o sacodem (o que não deverá estranhar-se) ao ingresso dos chamados “professores de educação física” na sua direção e gestão, como dirigentes e treinadores e pedagogos e trabalhadores do conhecimento.
Para além da variedade de escolas, estilos, processos e símbolos, descobre-se hoje no desporto nacional uma “vontade de consciência” que é o sinal mais seguro de que há profissionais “novos” que o pensam e o promovem. Eu próprio, que nunca fiz desporto mas sempre vivi dentro do desporto (ainda me recordo do Jorge Araújo, há mais de 60 anos, a jogar basquetebol no chão “acimentado” do Estádio das Salésias) – eu próprio preciso de um diálogo constante com “professores de educação física” para aumentar o meu pequeno reservatório de saber acerca do fenómeno cultural de maior magia no mundo contemporâneo – o desporto! Neste passo, não escondo o que devo ao Prof. Gustavo Pires, o meu “centro de documentação”. Muito lhe devo, a este respeito. É um especialista de invulgar cultura desportiva.
Para mim, o professor de educação física é o “invisível evidente” do progresso que o desporto português atualmente atravessa. A consciência não é imediata, é mediata. Não nasce rápida e decisiva com a leitura de um livro – nasce, de facto, de uma tarefa, “a tarefa de quem deseja tornar-se mais consciente” diz-nos o Paul Ricoeur no seu De l’interprétation. Essai sur Freud (Seuil, Paris, p. 32). Portanto, a consciência decorre de um processo, de uma vontade, de uma vida. E, neste processo, bem é uma atenção constante às ideias fundantes (que fundam) o tempo que se vive. Salvo melhor opinião, os cursos superiores de desporto e de motricidade humana devem abrir amplas vias de diálogo com a filosofia, para não derivarmos para uma imagem secundária do ser humano (natureza e cultura, razão e imaginação, memória e profecia).
Assisti, por gentileza do meu Amigo, o professor de educação física, João Paulo Medina, era ele o principal adjunto de Telé Santana, a vários treinos no futebol brasileiro; trabalhei 13 meses com o “mister” Jorge Jesus, no futebol do S.L.Benfica; estou em contacto permanente com o meu querido Doutor José Mourinho, meu Amigo e meu Mestre – julgo poder limitar-me, sem receio, a breves considerações sobre o futebol atual. Mas acorre também, em minha ajuda, a atitude de suspeita sugerida pelas ciências humanas. Vivemos, embora a sofística de certos ditadores, o fim da inocência ideológica e científica. Sabemos que não sabemos. Precisamos, por isso, de cientistas que não se refugiem, sob o pânico da mudança, no cientismo e no positivismo. E de filósofos e teólogos abertos à interdisciplinaridade com outros ramos do saber. É impossível, hoje, observar os factos e os acontecimentos, incluindo os desportivos, sem a síntese ciência (ou tecnociència, se quiserem)-filosofia-teologia.
E termino já este artigo, com dedicatória: ao José Mourinho e ao jornalista Fernando Guerra. Nas suas palavras amigas, encontrei motivos para voltar a… mais uma crónica!