Mulheres a surfar por um futuro melhor em São Tomé e Príncipe, um documentário solidário
Foto Ana Catarina/Lusa

Mulheres a surfar por um futuro melhor em São Tomé e Príncipe, um documentário solidário

DIVERSOS15.11.202322:15

ONG trabalha em São Tomé para promover igualdade de género e combater abandono escolar e gravidez adolescente.

SOMA. Surfistas Orgulhosas na Mulher de África. Um nome poderoso para uma causa poderosa: ajudar as raparigas e futuras mulheres de São Tomé a abrir horizontes através da educação e do surf.

São Tomé tem uma elevada taxa de desigualdade de género, abandono escolar e também de gravidez na adolescência, esta com números a bater nos 27% em áreas rurais, uma das mais altas na África subsaariana. Das raparigas espera-se que façam tudo em casa, já dos rapazes nem por isso.

Através de um programa de um ano, a ONG SOMA, criada pela portuguesa Francisca Sequeira, tenta quebrar um ciclo difícil com várias camadas e anos de falta de oportunidades, usando o mar tão grande – afinal falamos de um arquipélago no Atlântico, mesmo acima da linha do Equador (na verdade passa no Ilhéu as Rolas, logo abaixo do Príncipe, onde um marco o assinala – onde muitas raparigas nunca entraram por lazer. O corpo dentro de água muitas vezes só no rio, para lavar roupa.

Um recente documentário, produzido pelo estúdio Shutterstock – que fotografou as raparigas no mar para o seu arquivo, sendo que as vendas revertem para a SOMA - e pela Betclic, mostra o trabalho da SOMA com raparigas entre os 6 e os 18 anos (entre os 6 e os 10 num registo mais leve) para que esses ciclos possam ser interrompidos. Um acompanhamento que tenta mostrar como um caminho aparentemente pré-definido pode ser reescrito, como meninas podem tomar consciência do seu corpo e usá-lo verdadeiramente para si, seja na vida pessoal, sonhando com um futuro diferente, ou em cima de uma prancha a apanhar ondas, onde podem sentir-se realmente livres.

Francisca fundou a SOMA como terapia para estas meninas, mas também para ela própria. «Foi na altura da Covid-19. Trabalhava como assistente de bordo e tinha facilidade em lá ir. Comecei a sentir ansiedade, a precisar de terapias e virei-me para o surf, algo que tinha feito na adolescência mas tinha entretanto, estupidamente, largado. Procurei um sítio onde pudesse surfar, um destino sem tantos casos de Covid-19, em Portugal não era possível. Já conhecia a ilha, tinha estados alguns dias lá, máximo de três ou quatro, mas só tinha visto rapazes nas ruas e no mar. Uma ilha que emanava muita pureza, paisagens deslumbrantes, recursos naturais, mas os recursos humanos das minhas memórias eram rapazes. Não vi nenhuma rapariga no mar. Então tive um momento aha!. Onde estão as mulheres?», conta a A BOLA. «Percebi que o que podia fazer por mim também podia partilhar com outras mulheres. É curioso, uma das coisas que mais me espantou foi que as raparigas têm conexão grande com a água, mas com a do rio. Era e é o espaço de terapia delas. Acabam por transformar tarefas num momento em que estão a conversar ou cantar. Acaba por ser terapêutico para elas», recorda.

Aprender a nadar antes de aprender a surfar

Muitas das meninas nem sabiam nadar, com medo do mar, mas o SOMA tem registos de antes e depois sua intervenção. Se antes era «perigo, medo, desconhecido, alimento, depois passou a ser amizade, felicidade, confiança», sorri Francisca.

Num ambiente que pouco tinha, ter pranchas em São Tomé foi um dos principais desafios, tanto no transporte como na manutenção. Todas eram doadas desde Portugal, levadas por Francisca ou voluntários. Agora seguem de forma sustentável, de navio.

Na praia faz-se surf, mas faz-se muito mais. Medita-se, fala-se dos sentimentos, tal como acontece nas instalações da SOMA, em Santana, na costa Oriental do Príncipe. Aí há aulas, sessões de autoconhecimento, workshops.

A ONG tem agora representação local complementada por voluntários em missões de seis meses. Uma teoria da mudança sobre os últimos três anos levou a SOMA a mudar o programa de acompanhamento de seis meses para um ano. «Não quer dizer que após um ano as raparigas saem do projeto. Mantêm-se, mas em outros formatos, como um clube para orientar psicológica e profissionalmente. Também temos uma programa profissional com formação, portanto queremos que depois sejam sempre acompanhadas até se tornarem mulheres independentes», orgulha-se. Francisca começou sozinha a recrutar meninas, hoje conta com o apoio de instituições locais, como as autarquias ou centros de saúde, que sinalizam quem mais precisa de apoio. Ainda que esteja aberto a todos, sem discriminar.

As famílias e os rapazes

Mas e as famílias, como aceitaram? Tirar uma rapariga de casa para ir surfar ou estudar não é uma mudança fácil. Um pai pode não gostar que uma filha chegue a casa com ideias de empoderamento e a questionar a forma como é gerida a família. Curiosamente, foram as mães quem mais resistiu na implementação dos programas – porque é nelas que acaba por ficar todo o fardo quando a divisão de tarefas não é partilhada por maridos/pais e irmãos. «Há um acompanhamento semanal em casa de cada família devido às mães ficarem sobrecarregadas duplamente por a filha não estar em casa para ajudar. Mas não tivemos pais a não autorizar a participação da filha no projeto. Tivemos, sim, dificuldade em manter assiduidade», recorda a fundadora da SOMA, sendo que está previsto para 2024 começar a dar formação às mães no âmbito da parentalidade positiva.

E os rapazes? «Creio que todos veem a SOMA de forma positiva – emprestamos pranchas ao único clube de surf da ilha para toda a comunidade as alugar a turistas, portanto era uma forma de o financiarem; por outro lado damos formações também aos rapazes, empregamos rapazes da comunidade para dar aulas de surf e há até dia de formação conjunta para rapazes e raparigas, a fim de que possam, juntos, encontrar soluções para vários problemas», explica, concluindo: «Se queremos ter a mudança, os principais agentes dessa mudança, os homens, devem ter consciência dela.»

Voltando ao nome da SOMA, «mulher de África», Francisca confessa que sonha levar o projeto para fora de São Tomé, para outros PALOP com potencial para o surf, havendo já projetos em fase embrionária de contactos em Cabo Verde nos próximos meses. Também lá as raparigas irão em breve acolher o mar com amizade e sentido de libertação.