«Esta época o Sporting tem tudo para ser feliz»

«Esta época o Sporting tem tudo para ser feliz»

A BOLA TV13.03.202409:40

Augusto Inácio, 69 anos, vinte títulos conquistados numa carreira ligada ao futebol onde já foi campeão europeu pelo FC Porto e vencedor de cinco campeonatos nacionais entre dragões e leões (e outro como treinador, em Alvalade, além de uma Taça da Liga ganha ao serviço do Moreirense), foi o convidado do Conselho de Estádio de A BOLA TV

Vítor Serpa (VS) - Em primeiro lugar, bem-vindo a A BOLA nas Torres de Lisboa, a esta visão mais futurista de um nome histórico. A primeira coisa que eu queria perguntar-lhe é se, com o currículo impressionante que possui, tanto como jogador, como treinador, não sente saudade de estar no ativo, a trabalhar no campo com os jogadores todos os dias?

- Realmente há coisas que dizemos para connosco quando temos um momento de paragem, tais como, foi bom, deu para descansar, para estar ao pé da família, para rever amigos, mas chega-se a um ponto em que falta qualquer coisa na vida, e surge a necessidade de preencher um vazio. Tento manter-me atualizado, e hoje em dia, com isto das tecnologias, uma pessoa só não está atualizada se não quiser. Mas falta claramente o cheiro da relva, o liderar, a adrenalina dos jogos, o pensar qual é a melhor tática, qual é a melhor equipa, para ganhar o jogo. Às vezes estou a ver jogos na televisão e digo para os meus botões, ‘Augusto, devias estar ali’, e não se trata de cobiçar o lugar de ninguém.

VS - Será o facto de ter acabado de fazer 69 anos a condicionar a sua escolha, sobretudo em Portugal onde há a noção de que uma pessoa, a partir de determinada idade, deixa de poder ter futuro, só pode ter passado?

- Tenho duas respostas para essa pergunta. A primeira, porque estive muito tempo no estrangeiro, é lembrar que há países onde a idade significa sabedoria, enquanto que por cá, como bem referiu, não é isso que se passa. A segunda é que nunca tive empresário fixo, quanto muito um ou outro que me alertavam para determinadas hipóteses. Mas devo confessar que se hoje fosse jogador, queria ter empresário, até porque nunca soube negociar contratos, apenas pedia o papel e a caneta para assinar.

José Manuel Delgado (JMD) -No futebol, já fez de tudo…

- Eu fui aproveitando sempre o dia-a-dia, e acho que sim, já fiz quase tudo no futebol. Fui jogador, fui treinador, fui diretor desportivo, já escrevi para dois jornais, fui comentador desportivo nas televisões, e agora estou na rádio Observador, na qual faço comentários. Mas houve uma coisa que eu nunca fui: selecionador nacional. E gostava de ter essa experiência, num país que não tem de ser Portugal.

JMD - Mas para isso é preciso ter um empresário, não é?

- Sim, claro. Mas vou morrer assim, o que é que hei de fazer?

JMD - O único selecionador de que tive realmente inveja foi do professor Neca, que durante várias épocas dirigiu as Maldivas…

- Para quem gosta de praia é uma maravilha!

JMD - É compensador ser treinador em Portugal? Ou por não ser, assim se explica que haja 400 treinadores portugueses a trabalhar no estrangeiro?

- A pergunta é interessante, e embora haja pessoas que não gostem, eu vou ser muito direto na resposta. Muitos treinadores vão para fora porque não têm trabalho cá, e a vida tem de ser vivida todos os dias. E vão, não pelo projeto desportivo, mas porque o contrato é financeiramente bom. Acho uma hipocrisia muito grande por vezes dizerem que só vão pelo projeto. Ok, vão pelo projeto, mas se não fosse o dinheiro não iam. Alguns vão ficar zangados comigo, mas eu acho que é assim mesmo. Eu também fui muitas vezes lá para fora, e fui para alguns países apenas porque o dinheiro era bom. Se não fosse bom, eu ia para o Irão fazer o quê? O Irão dizia-me alguma a nível de futebol? Mas estava a trabalhar e a ganhar bom dinheiro, coisa que não acontecia em Portugal…

JMD - E porquê?

- Isto em Portugal, está a ter uma tendência complicada, porque há clubes que estão nas mãos dos empresários. Metem lá o treinador, e atrás dele vêm mais dois ou três jogadores ,que são deles… Mas eu tenho coluna, e não me dobro, não aceito um jogador só para fazer o jeito ao empresário. Se gosto do jogador, fica, se não gosto recuso-o, e isso não interessa para o negócio. É por isso que sou uma pessoa, às vezes, indesejável.

VS - Mas tem uma situação de vida que lhe permite ter a liberdade de dizer não…

- Sempre fui assim. Veja, fui para a Roménia, para Angola, através de convites do empresário. Mas vivi situações em certos países onde chegaram a dizer-me ‘Oh, mister, aquele defesa direito, ou aquele guarda-redes, no próximo jogo, não pode jogar, tem que jogar o outro...’

VS - Mas isso acontece no futebol português?

- Não, no futebol português, não. Lá fora fui despedido duas vezes por ter recusado pactuar com estas situações. Disseram-me: ‘Mister, vamos fazer contas. E eu respondi: ‘É, quando quiser.’

AUGUSTO INÁCIO E O SPORTING

JMD - Ser reconhecidamente sportinguista atrapalha-o nos comentários?

- Quando faço crónicas ou algumas coisas para a rádio Observador, há um jogador que me tem impressionado muito, gosto mesmo do jogo dele, da forma como se entrega, que é o João Neves, do Benfica. E recebo, mensagens a dizer ‘mudaste de camisola’, ou que estou contra o Sporting. Mas agora não posso dizer bem de um jogador do Benfica? Há quem veja só com óculos verdes, ou azuis, ou vermelhos.

VS - Mas agora tem muito para dizer bem do Sporting…

- Mas tenho mesmo! É a equipa mais consistente desde o princípio da época até agora. O Sporting tem mantido uma bitola excecional e já devia ter sete ou oito pontos de avanço. Não que o Benfica não mereça ter os pontos que tem, porque mesmo não jogando bem, vai ganhando os seus jogos. Mas, de forma sumariada, o Sporting tem sido a melhor equipa, o FC Porto tem tido altos e baixos, e o Benfica está muito intermitente, embora continue na luta pelo título. Já o FC Porto, na minha opinião, não está na luta pelo primeiro lugar, está na luta pelo segundo. É a minha opinião. Mas, esta época, o Sporting tem tudo, sinceramente, para ser feliz.

JMD - Mas o Sporting vacilou um pouco com o Farense, e voltou mostrar algumas debilidades ante a Atalanta. Depois recuperou bem em Arouca e agora tem o jogo de Bérgamo. Faltam-lhe dez jogos de Liga, mais pelo menos este jogo europeu e um dérbi para a Taça de Portugal. Há o risco da equipa sucumbir à pressão?

- Sei bem o que aconteceu no ano em que fui campeão pelo Sporting. Perdemos em casa com o Benfica na penúltima jornada, e uma semana depois precisávamos de vencer o Salgueiros em Vidal Pinheiro para carimbarmos o título. Aqueles sete dias, entre os dois jogos, não foram sete dias, foram sete anos! É claro que a pressão aumenta à medida que se caminha para o fim do Campeonato. Mas ainda bem que existe esta pressão, porque é sinónimo do Sporting estar em primeiro, de o Sporting estar à frente do Campeonato.

JMD - Acredita, então, no Sporting?

- Já o disse. Mas não deixo de reconhecer que as primeiras partes do Sporting, com o Young Boys, com o SC Braga, com o Benfica e até com a Atalanta, têm sido melhores e mais intensas que as segundas.

VS - Esta equipa do Sporting quando é menos intensa perde-se, e perde o foco no jogo?

- O Sporting jogou com a Atalanta a pensar no Arouca. Mas o que aconteceu em Arouca fez bem à equipa, e se calhar esse foi o jogo do título. A gestão do Rúben Amorim pode não ter dado para ganhar à Atalanta, mas não podemos esquecer que ganhar o Campeonato é a prioridade de todos os clubes, do Sporting, do Benfica e do FC Porto. E depois o resto logo se vê.

VS - O Rúben Amorim é realmente um treinador diferente? É que é capaz de produzir uma série de afirmações politicamente incorretas, como assumir que o Sporting teve sorte no jogo com os italianos…

- Ele é tão bom treinador fora do campo, como dentro do campo, e ainda na comunicação. Explica-se bem e não procura desculpas. Por exemplo, Roger Schmidt, quando toda a gente, a começar pelos benfiquistas, viu que a equipa jogou mal, vem dizer que jogou muito bem e mereceu ganhar. E o Rúben não é assim. Depois do jogo com a Atalanta, pensei cá comigo: ‘que grande sorte tiveste, aqueles postes estavam pintados de verde-e-branco e tinham colados um anjinhos e umas santinhas.’ Mas qual é o problema em reconhecer-se que o adversário foi superior e que se teve sorte? O jogo seguinte tem sempre outra história…

JMD - O futebol tem mudado muito?

- Sim, sem dúvida. Quando jogávamos, era mais a olho, hoje há aqueles gabinetes de alta performance, os GPS todos, que apontam os limites dos jogadores. Porque é que em Arouca o Coates saiu? Provavelmente estava no limite e o Rúben não quis correr riscos, uma vez que uma lesão muscular nesta altura estraga o resto da época.