Triste o futebol que perde os seus cavalheiros

OPINIÃO29.11.202206:00

Poucos meses depois da partida de Chalana, quis o destino, tristíssimo, que nos víssemos privados de Fernando Gomes

NÃO sei se é o futebol que está a mudar, se é consequência de estar a ficar mais velho, ou se sou eu que vivo dias estranhos. Talvez seja um pouco de tudo isto. Os meses vão passando e 2022 torna-se um ano cada vez mais agridoce. Certo, há um entusiasmo natural e incontornável com o Benfica, que vou analisando e celebrando aqui, a cada vitória galopante. Uma pessoa até se cansa, explicava eu a um amigo há poucos dias, que confirmou ser um amigo quando compreendeu a minha bazófia. Espero que não faça troça de mim no dia em que o Benfica perder sem apelo nem agravo (mesmo que esse dia pareça distante). É claro que nenhum adepto se cansa realmente de ganhar, mas às vezes dou por mim com saudades de uma reviravolta épica nos últimos minutos. Por outro lado, nestas coisas o melhor é mesmo não correr riscos. Mais vale continuar a vencer com segurança, com algum enfado até, mesmo com as segundas linhas em campo.  
Mas é um ano estranho, como dizia. Há muita coisa que me alegra nesta época desportiva, mas há também uma melancolia que vou sentindo, talvez por ser um ano em que vi partir pessoas importantes a nível pessoal, e porque simultaneamente assisti, como os milhões de adeptos portugueses, à partida de dois autênticos senhores do desporto português.

O nosso futebol tem muitas figuras marcantes, por diversos motivos, mas o facto é que há muito poucas personalidades tão carismáticas como foram os saudosos Fernando Chalana ou Fernando Gomes, que há poucos dias nos deixou. A partida de Fernando Chalana em agosto deixou um enorme vazio nos benfiquistas, sentimento que eu gostaria de ver atenuado com um título nacional dedicado ao Pequeno Genial no fim desta época. Mas não foram só os benfiquistas a emocionar-se com a sua partida. Para além de um futebolista prodigioso, Fernando Chalana, pela sua personalidade simples, pela simpatia que todos lhe reconheciam, pela humildade que patenteou, cultivou uma presença invulgarmente consensual no nosso futebol, quase desarmante. Foi comovente constatar essa aclamação nos dias que se seguiram à sua morte.

Poucos meses depois da partida de Chalana, quis o destino, tristíssimo, que nos víssemos privados de Fernando Gomes. Um avançado de eleição, um futebolista talhado para conquistar o adepto esteta, que por isso se tornou ídolo de muitos miúdos e graúdos ao longo da sua carreira, e não apenas portistas. Agora imaginem alguém que consegue ser tudo isto no relvado, conquistando títulos ao serviço do nosso principal rival, por vezes até inimigo, e conseguir ainda assim permanecer na memória coletiva como uma das pessoas mais gentis e respeitáveis de sempre no futebol português. Não sei se Fernando Gomes se tornou o cavalheiro que demonstrou ser ao longo da sua vida porque foi bem educado pelos pais, ou porque as aventuras e desventuras do futebol lhe permitiram desenvolver uma rara cultura desportiva. Imagino que tenha sido um pouco das duas coisas, e que o Bibota, dotado de rara inteligência futebolística e emocional, tenha usado o sentido de baliza que tantos lhe reconhecem para marcar um outro tipo de golo e tornar-se um perfil singular no futebol português. É elogio mas também uma triste constatação daquilo que tem sido a vida interna dos clubes e a sua representação oficial ao longo dos anos. Fernando Gomes foi portista devoto, jogador, dirigente, e fez tudo isso conservando uma rara elegância no nosso panorama desportivo. É um lugar que só a ele pertence, por isso insubstituível.

Eu faço parte de uma geração de adeptos que viveram toda a sua vida em guerra, metaforicamente falando. Não conheço outra realidade. Ao longo de 35 anos a ver futebol com olhos de ver, não me recordo de um período de amabilidade nas relações entre Benfica e Futebol Clube do Porto e conto pelos dedos de uma mão os momentos dignificantes nas relações entre os três clubes grandes. Não fui educado em casa para cultivar uma lógica de ódio a outros clubes, nunca fiz parte de claques ou de grupos de adeptos que fomentassem o ódio ou exacerbassem a lógica adversarial, e tenho muitos amigos que são adeptos dos outros clubes grandes, mas mentiria se dissesse que tudo no meu entendimento do futebol português desde criança até aqui se explica pelo que acontece dentro de campo. O futebol português reserva outros momentos formativos. É-se criado para lentamente assimilar o nosso jogo como uma coisa mais complexa e opaca do que simplesmente a bola que entrou ou não na baliza. Nunca é exatamente assim e, algumas décadas depois, sinto que a trama se adensou por via da mediatização e aceleração da suspeita e do seu ciclo de vida enquanto rumor, notícia ou calúnia.
Talvez por ter uma visão pouco otimista do nosso futebol sinta ainda mais que a partida de referências como Fernando Chalana e, agora, Fernando Gomes, entristece e dá que pensar. Parece-me que que as características raras que enaltecemos ao lembrar as vidas destes dois grandes vultos se tornaram ainda mais raras precisamente por culpa de todos nós. O futebol e a cultura desportiva que Chalana e o Bibota nos deixam não é aquela que diariamente fomentamos, e aqui me incluo. É uma reflexão que prometo fazer e procurar refletir nestes textos ou onde quer que venha a praticar a condição de adepto. A grandeza destes dois ídolos, demonstrada dentro e fora de campo, fez deles anomalias quando enquadrados na história recente do futebol português. Mas a sua memória merece mais.