Teorias da contradição

OPINIÃO19.05.202004:00

ESPERO, sinceramente, que tenhamos todos a humildade (e inteligência) de aprender com o que tem acontecido nesta fase das nossas vidas. É mau de mais pensar que algo assim, que impôs tantos sacrifícios e causou tanta dor, possa não servir de lição para o presente e futuro.
A primeira conclusão é óbvia: somos uma espécie fantástica, com uma incrível capacidade de adaptação e evolução mas que está ainda a anos-luz de controlar tudo o que a rodeia. Haja humildade para o reconhecer.
Quando começamos a convencer-nos que isto é tudo nosso, logo parece uma qualquer catástrofe de proporções gigantescas ou, como agora, uma espícula glicoproteíca sem vida própria e com menos de cem nanómetros, para nos colocar no sítio certo, como que dizendo: «Calma, sapiens. Calma! Sabes bem menos do que pensas.»
E pronto. Em segundos, voamos da arrogância das certezas para a humilhação das dúvidas. Como não sabemos lidar com esse estalo, entramos em tilt. Caímos no campo das contradições, das teorias contrastantes e das verdades que hoje são garantidas e que amanhã são meras possibilidades.
Reina a confusão em quem não está habituado a dar o leme ao imponderável.
Querem exemplos? Vejamos:
- O confinamento foi necessário versus o confinamento foi péssima opção; o vírus é perigoso versus o vírus não é mais grave do que o da gripe sazonal; a máscara é imprescindível versus a máscara é dispensável; o uso de luvas é fundamental versus o uso de luvas é desnecessário; as superfícies são contagiosas versus as superfícies não oferecem perigo para ninguém; a imunidade de grupo é a melhor solução versus a imunidade de grupo mata os velhinhos e expõe-nos à infeção; a taxa de letalidade é enorme versus a taxa de letalidade é irrisória.
Enquanto Espanha prolongou o Estado de Emergência, a Suécia nunca o fez. Enquanto há campeonatos que pararam, há outros que continuaram. Por cada líder mundial mais prudente e preocupado, há um Trump, um Bolsonaro ou um Lukashenko irritado.
É um mar de disparidades a céu aberto.
No futebol, a coisa mantém a mesma precisão. Reparem:
- Suplentes sentados com distanciamento e a usar máscara versus colegas de equipa a fazerem barreiras defensivas, colados uns aos outros, a transpirar, respirar e cuspir; cumprimentos iniciais com o cotovelo versus marcações cerradas na área, ao agarrão e empurrão, sem distância de segurança; celebração de golos morna, fria e distante versus faltas cometidas com contactos evidentes, pernas e mãos entrelaçadas e cabeças encostadas.
As bolas são desinfetadas antes do jogo e depois passam pelas mãos de jogadores e apanha-bolas, tocam nos postes, na barra, nos painéis publicitários e nas bancadas, rolam na relva onde os pitons aterram, são jogadas por pernas suadas e cabeceadas por testas transpiradas.
Todos testados, afastados, prevenidos. Todos voltam depois para casa, para junto da mulher, dos filhos, dos vizinhos ou amigos.
Assumamos: fazemos o que podemos mas o que podemos é ainda falível, porque somos mais pequenos do que o vírus. Ponto.
«Só sei que nada sei e nem disso tenho a certeza», disse Sócrates no séc. IV AC.
Essa sim, é uma verdade absoluta.