Suspensão da descrença

OPINIÃO05.04.202207:00

Hoje é o dia em que começa tudo outra vez e a ilusão se apodera de nós. Só quero que a bola entre e que o Liverpool saia da Luz derrotado

Q UE se lixe a racionalidade. Desta vez não quero saber o que dizem as exibições na Liga, os analistas da tática, as casas de apostas, os vizinhos no café, e o mundo em geral. Ou melhor: vou querer saber os nomes e moradas de cada um desses indivíduos se porventura a vitória sorrir ao Benfica logo à noite. Pior: se passarmos às meias-finais será necessário inquirir cada uma destas pessoas no tribunal do prime time televisivo e das redes sociais, como decerto compreenderão.
Parece-me ideal abandonar a racionalidade porque, em abril de 2022, é notório que essa faculdade não permite compreender esta equipa do Benfica. Sim, é verdade que os árbitros têm apitado contra nós em momentos capitais de alguns jogos, mas não me parece ser aí que a época se tenha decidido.
Estamos a quase 20 pontos do nosso principal adversário interno e ninguém parece saber muito bem como aqui chegámos. Será a falta de consistência dos jogadores? Será a mudança de treinador que não surtiu efeito? Será um projeto desportivo que já nasceu torto e por isso nunca se endireitou? Será que estes atletas não se motivam para as competições internas? Será que compreendem o emblema que representam? Será que Rui Costa precisa de dar mais um murro na mesa ou voltar a arrasar o balneário? Será que temos presidente? Ou será antes um co-CEO a navegar à vista? Será que temos lançado comunicados a menos ou será que lançamos comunicados a mais? Será que a culpa é dos benfiquistas que se angustiam com tudo isto e por isso criticam Direção, treinador e jogadores na esperança de que todos reajam no jogo seguinte? Será que é tudo isto e mais alguma coisa que só vamos descobrir numa escuta ou quando alguém decidir que é tempo de soprar a informação do costume para os órgãos de comunicação social do costume?
Não sei, e hoje não é dia para isso. Hoje é o dia em que começa tudo outra vez e a ilusão se apodera de nós. Foi assim contra o Ajax. Passei algumas semanas a dizer às pessoas que ganhávamos. Há prova documental em como escrevi «é agora» segundos antes do nosso golo em Amesterdão. E de nada a racionalidade me serviu nesses momentos. Não havia nenhum plano infalível, como nunca há. Mas neste caso foi mesmo uma fé que me deu, não sei se na capacidade de os atletas se motivarem para as noites europeias, se acreditei que eles perceberam o clube que representam, ou se me convenci dos superpoderes conferidos pelo manto sagrado.
Até aqui, era visível que a equipa do Benfica tinha vindo a acumular nas pernas e na cabeça o desgaste físico e emocional provocado pelos sucessivos jogos e por resultados quase sempre tão maus como as exibições. É verdade que Veríssimo ainda não conseguiu três vitórias consecutivas. Mas, feito o rescaldo a quente e a frio, aquela segunda mão contra o Ajax revelou um Benfica qualquer que só tínhamos visto a espaços em Eindhoven e em casa frente ao Barcelona.
 

Benfica joga esta noite a primeira mão dos quartos de final da Liga dos Campeões com o Liverpool


Não tendo sido o tal Benfica de dimensão europeia, um Benfica a procurar mandar no jogo e impor uma ideia mais atrativa - esse conceito permanece uma realidade longínqua - foi no entanto um Benfica apto a combater na Europa, que soube utilizar as armas ao seu dispor com uma eficácia assassina. Não é bonito ver o Benfica entregar a iniciativa do jogo ao adversário de forma tão declarada. Direi até que não é digno do Benfica ideal - só que, no fim, essa estratégia revelou-se extremamente eficaz, e talvez seja a única que podemos ambicionar hoje. Os neerlandeses nunca conseguiram massacrar nem tão pouco criaram grandes ocasiões de golo, não obstante terem a equipa na máxima força, um estádio cheio, e toda a sabedoria dos analistas do seu lado. No final, não foi só o Ajax que se mostrou irreconhecível. Foi também o Benfica, de certa forma. E ainda bem.
Hoje é a primeira de duas noites em que se pede a Veríssimo e aos seus jogadores que voltem a causar esta perplexidade aos benfiquistas e aos jogadores e adeptos da equipa adversária. A nós, adeptos, pede-se que suspendamos a descrença, e é isso que estou a fazer desde o dia do sorteio da Champions. Empatámos com o Vizela? OK, é mau, mas temos aí o Liverpool. Perdemos com o Sporting de Braga? Ninguém gosta, mas, e o Liverpool? Pouco ou nada sabemos acerca da próxima época? Tenham paciência, mas primeiro vem o Liverpool. E, depois, quem sabe, virá o Bayern ou o Villarreal. Não sei se esta indiferença temporária em relação à nossa época desastrosa é uma coisa boa ou má, porque pode significar um início coxo da próxima época. Mas nada disso interessa hoje.
E não vale a pena analisar demasiado, não vá a frieza dos números quebrar o ânimo. Posso dizer-vos que já cometi o erro de olhar para as estatísticas de posse de bola, ocasiões de golo e tempo passado no meio campo adversário pela equipa do Liverpool. Cheguei mesmo a assistir aos jogos na esperança de vir a descortinar formas de desbloquear este adversário. Nada mais errado.
Creio ter chegado à conclusão mais honesta de todas, que é muito simples: não peçam a nenhum benfiquista que explique de forma racional como é que isto vai acontecer. Já ouvi falar de um espaço que a defesa do Liverpool deixa nas costas, da importância das saídas de bola com passe curto que saibam ultrapassar a primeira linha da pressão, e sabe Deus mais o quê. Talvez o sucesso resida numa dessas pequeníssimas brechas ao nosso dispor, ou talvez o venhamos a encontrar na fé inabalável dos 11 em campo, dos milhares na bancada, e de mais uns milhões no resto do mundo, traduzida num lance abençoado mais ou menos estudado, ensaiado no laboratório do céu, qual momento de justiça divina a dar-nos uma alegria imensa nesta época cheia de tristezas e angústias.
Em suma: só quero mesmo que a bola entre e que o Liverpool saia daqui derrotado, Klopp cabisbaixo a perguntar a si mesmo que Benfica foi este que não veio nos relatórios dos seus analistas, mas que encontrou a sua tática no coração dos jogadores e dos adeptos. Feitas as contas ao nosso rosário, bem merecemos continuar a sonhar mais um pouco.