Saber ganhar e saber perder
Há um olhar no Rafa em que ele parece respirar de alívio e ao mesmo tempo se questiona, tal como nós: onde andavam aqueles golos?
CONSIGO lembrar-me de vários momentos da carreira de Rafa, pela forma como se exibe em campo, que o excluem da definição tradicional de ídolo. Falo daquele tipo de jogador que alia o talento ao carisma, que consegue juntar uma capacidade individual a um entendimento solidário dos princípios coletivos, que leva o jogo a sério mesmo quando brinca com a bola nos pés, que tem sempre pilhas quando a maioria parece ceder ao cansaço, que sorri involuntariamente com os pés num jogo tantas vezes infeliz, que marca um golo ou dá a marcar e a primeira coisa em que pensa é correr na direção dos adeptos para celebrar com eles, que nunca se parece alhear da sua condição, mesmo nos dias maus; no fundo, um jogador que exibe todos os sinais de alguém nasceu para isto e se sente confortável nesse papel.
Rafa é muitas destas coisas, mas não é um ídolo na acepção tradicional do termo. É certo que já todos o vimos fazer coisas de ídolo, e seguramente não lhe falta qualidade enquanto jogador. Já a demonstrou vezes suficientes, aliás, para o podermos considerar um dos melhores jogadores do Benfica na última década. Mas a sua personalidade, e alguns apagamentos ao longo dos muitos anos de Benfica que já leva nas pernas, revelam um homem que é mais ele próprio do que qualquer representação convencional de um ídolo ou uma extensão metafórica dos adeptos na bancada.
Mas este sábado vi uma expressão no Rafa que transmitiu como poucas tudo aquilo que sentíamos na bancada. No mesmo instante em que o João Mário e o Gonçalo Ramos se aproximam dele com a fúria de quem esperava há mais de 66 minutos e sabia estar agora mais perto da vitória, há um olhar no Rafa em que ele parece respirar de alívio e ao mesmo tempo se questiona, tal como nós: onde andavam aqueles golos? No relvado, tal como na bancada, todos sentimos que tirámos um pequeno peso de cima e nos reencontrámos com a nossa vocação. Nos segundos antes do golo, todos fomos um bocadinho o João Neves - ídolo da cabeça aos pés - a desafiar os céticos da anatomia para ganhar a bola a um adversário maior do que ele e colocá-la jogável num colega, e depois disso todos fomos um bocadinho, ou muito, o António Silva a juntar as mãos e a rezar para que a bola entrasse. O remate do Rafa nem foi dos melhores, e nem por isso foi menos perfeito.
NADA está ganho, mas o Benfica tem tido uma relação complicada com as provas de regularidade e era fundamental que sábado fosse uma noite de reafirmação da equipa, isto depois de algumas exibições menos conseguidas contra os primeiros classificados da Liga. Se a noite pedia essa resposta, o que se pode dizer é que os jogadores compareceram da melhor forma possível, aliando o bom futebol a níveis físicos que dão muito ânimo para as três jornadas que faltam.
Soubemos ganhar quando muitos apostavam no resultado oposto. O jogo foi dominado do princípio ao fim pelo Benfica, apesar de alguma ficção tentada pelo treinador do Sporting de Braga, compreensível se imaginarmos a frustração de uma derrota que o coloca fora das contas do título. Independentemente do desabafo a quente, Artur Jorge está de parabéns na sua primeira época à frente da equipa principal.
Menos compreensível foi a falta de boas maneiras exibida por António Salvador, que ainda assim não terá da minha parte a mesma falta de respeito. O presidente do SC Braga lidera um clube cheio de história e desenvolveu um projeto desportivo muito meritório que só o pode orgulhar. O trabalho desenvolvido por ele e pela estrutura do SC Braga ao longo dos anos têm-se traduzido ano sim ano sim em bom futebol. Não menos importante, o estádio do SC Braga recebe regularmente dezenas de milhares de adeptos que engrandecem o clube e já lhe deve ter dado muitos pontos em noites complicadas como a de sábado. Desta vez não foi possível, mas a qualidade do campeonato português depende de adversários com esta valia. Arrisco dizer que é só mesmo uma questão de tempo até este Sporting de Braga conquistar uma Liga. E não são algumas reações infelizes do presidente do clube que me vão toldar a visão. Há que saber ganhar e saber perder.
POR falar em saber ganhar e saber perder, nesta última semana assisti a dois acontecimentos diametralmente opostos naquilo que representam para o futebol. Começo pelo mais infeliz. Ver o treinador do FC Porto correr na direção do treinador do Famalicão para celebrar o golo na cara dele e ainda soltar uns impropérios é das manifestações mais feias que me lembro de ver no futebol português. Sentiria alguma vergonha se visse isso hoje no Benfica, como já senti no passado com alguns comportamentos de Jorge Jesus, por exemplo. Aliás, por muito menos fico incomodado. Não gostei de ver um membro da equipa técnica a guardar a bola nos últimos minutos contra o Sporting de Braga, e acho que isso deve ser dito sem hesitação. Mas a suposta autenticidade de Sérgio Conceição está num campeonato só seu. É curioso que o próprio, quando questionado sobre este tema, afirma recusar a hipocrisia, como se todos nós estivéssemos do lado errado da história e fosse Sérgio Conceição o suposto representante da forma correta de estar no futebol. É absolutamente lamentável que Sérgio Conceição não veja nisto motivo para se envergonhar, mas antes uma virtude da sua personalidade. Por outro lado, registo a ironia. Se bem se recordam, da última vez que alguém adjetivou os comportamentos de Sérgio Conceição sem a hipocrisia que o próprio afirma recusar, acabou processado em tribunal por difamação. Tem a sua piada.
PARA terminar, sobre ganhar e saber perder, quero dar os parabéns ao Clube de Futebol Os Belenenses pela fantástica história que tem escrito nos últimos anos. Descer às trevas e voltar ao topo não é para todos. Mas o Belém está quase lá. Espero ver este histórico do futebol português de volta ao lugar de onde nunca devia ter saído, se possível já na próxima época.
E agora de volta ao que mais interessa. Venha a vitória em Portimão!