Responsabilidades do desporto
Bem sei que um dos ‘desportos’ mais praticados no País é o de ‘malhar’ nas organizações e nos dirigentes desportivos
Odesporto é um espaço social e nele confluem e conflituam todas as contradições da condição humana. Não é nem mais puro, nem mais impuro do que outros espaços e domínios de representação social. Mas tem singularidades que o distingue dos demais.
Sendo uma das práticas sociais mais expostas no plano comunicacional, o que ganha em visibilidade e popularidade, perde em vulnerabilidade. E isso traduz-se numa evidente fragilidade na forma como se protege das ameaças que o rodeiam.
Os problemas que atingem o desporto moderno - a violência, o racismo, a dopagem, a integridade, a manipulação de resultados, o abuso e o assédio sexuais - são evidências que o percorrem desde a Antiguidade e que, infelizmente, reencontramos em diferentes práticas sociais, em alguns casos socialmente aceites, como é o caso do uso de substâncias que visam aumentar o rendimento, que no desporto são uma clara proibição e nesse sentido uma exceção.
«A mesma interrogação pode colocar-se» em relação aos tribunais
Os dirigentes desportivos não têm apenas que se preocupar com a organização do desporto. Têm, em simultâneo, de dar atenção a práticas que o desvirtuam e pervertem como um bem social. Fazem-no, em muitas situações, com clara precariedade de capital humano, de conhecimento, de meios e de condições.
Não custa, por isso, reconhecer que nem sempre fazem tudo o que deveriam. Mas o maior erro é de outra natureza: não se saber traçar uma linha que demarque o que é da sua responsabilidade do que é a responsabilidade do Estado, designadamente na investigação e repressão de práticas que, tendo o desporto como palco, são claramente matérias de natureza criminal que recaem no âmbito das responsabilidades do Estado.
Ora, o desporto interiorizou e interioriza tudo como uma responsabilidade sua e, pior que isso, como culpa própria, como um pecado de que é o único responsável e não como algo que apesar de lhe dizer respeito está longe de estar nas suas exclusivas mãos combater e resolver.
Sejamos claros: o que cabe às organizações desportivas é a responsabilidade de tudo fazerem para prevenir fenómenos socialmente reprováveis que ocorrem no seu espaço de responsabilidade e cuja génese lhes é, muitas vezes, exterior. Mas não têm como, nem essa é a sua vocação, perseguir, julgar e reprimir as eventuais ocorrências, quando estas se revestem de uma conduta criminal. Cabes-lhe apenas aplicar no seu âmbito disciplinar as regras que sancionem os agentes desportivos que estão sob a sua alçada jurisdicional se forem eles os autores desse tipo de comportamentos. E, como é do conhecimento público, mesmo essas sanções nem sempre são confirmadas pelos tribunais.
Se é oportuno interrogarmo-nos se as organizações desportivas têm cumprido bem o seu papel, a mesma interrogação pode colocar-se em relação às entidades a quem cabe a função de avaliação e punição criminal.
Porventura chegaremos à conclusão de que quer uma, quer outras, estão longe de cumprir exemplarmente as suas obrigações, pelo que seria mais sensato apelar a uma responsabilidade comum nos domínios da prevenção, da educação, da investigação e da repressão relativamente a estes fenómenos do que alinhar num discurso de passar as culpas para os outros.
Bem sei que um dos desportos mais praticados no País é o de malhar nas organizações e nos dirigentes desportivos. Também sei que exemplos para o fazer não faltam. Mas pode ser um caminho tão inconsequente para consolidar um trabalho colaborativo, como negar ou mitigar as evidências crescentes de fenómenos que assolam a integridade do desporto e a reputação das suas organizações.
Mais do que lançar culpas a uma das partes, o que cada um se deve interrogar é sobre o que lhe cabe fazer na sua órbita de atuação. É isso que lhe dará sempre uma acrescida autoridade para exigir que a outra parte cumpra bem a sua. Não vislumbro outro caminho. Desejavelmente em regime de mútua responsabilidade, cooperação e complementaridade.