Preparados?
Aquilo que aqui nos conduziu, no essencial, não foi o Covid, não foram as arbitragens, não foi a falta de união, não foram as capas de jornais
Opróximo ano traz dimensões determinantes para o futuro do clube. Se há coisa que o futebol nos ensina é que temos direito a muitos novos começos, mas não podemos recomeçar do zero muitas vezes, sob pena de prolongarmos indefinidamente uma travessia do deserto que conduz ao divórcio de muitos adeptos em relação ao clube. Longe das alegrias de uma paixão ardente, o Benfica dos últimos anos tem sido acima de tudo uma provação para todos os seus sócios e adeptos, alternando de forma irregular entre a incompetência, a fraqueza de espírito, a desonestidade e a falta de amor à camisola.
Felizmente o amor clubístico contém irracionalidade suficiente para estarmos todos aqui, ano após ano, a resistir à sucessão de erros estúpidos que nos têm arrastado ao longo de épocas inteiras, obrigando ao sofrimento quem não consegue deixar de acompanhar o Benfica e, ainda pior, colocando em risco a época seguinte. Há muitas narrativas para estas coisas, mas nenhuma tem sobrevivido ao confronto com a realidade, essencialmente porque os adeptos não são estúpidos. Acredito que, no fundo, a maioria dos adeptos sabe que aquilo que aqui nos conduziu, no essencial, não foi o Covid, não foram as arbitragens, não foi a falta de união, não foram as capas de jornais - na verdade não foi nenhum fator externo ao clube. Foi mesmo a sua liderança, da direção comprometida a braços com a justiça à estrutura inoperante em modo start-stop que nunca arranca, passando por atletas desmotivados, comentadores encartados, e quem mais tiver participado direta ou indiretamente neste percurso deprimente dos últimos anos. Talvez eles não saibam, mas todos juntos têm roubado a muitos benfiquistas a vontade de acompanharem o seu clube.
Porque é que digo tudo isto após algumas vitórias consecutivas? Em primeiro lugar, porque não foram tão convincentes quanto se gostaria. Em segundo lugar, porque constituem uma potencial manobra de diversão se não virmos o que vem depois. E o que vem depois é uma série de desafios que determinarão o que poderá ser o Benfica nos próximos muitos anos.
O PLANEAMENTO DESPORTIVO
P OUCO ou nada se sabe sobre o projeto desportivo do Benfica a não ser que: o atual falhou, as pessoas contratadas no início da época já não servem, os jogadores basilares no projeto desportivo, que tinham sido contratados com um critério à prova de bala, afinal são para vender; há demasiados atletas a ganharem salários milionários e muitos terão que ir à sua vida; e entretanto chegou uma nova figura salvífica a quem já se atribui uma fórmula infalível para resolver todos os problemas, uma espécie de aloe vera do planeamento desportivo, apesar de rigorosamente mais nada ter mudado. Enfim. Também eu quero acreditar que Lourenço Coelho reunirá melhores condições para ajudar a reformular completamente o projeto desportivo do Benfica, mas talvez não seja boa ideia fazer dele o salvador da pátria. A nossa experiência recente com salvadores da pátria costuma acabar com rescisões amigáveis e abraços com sorriso amarelo. Curiosamente o projeto desportivo que agora será drasticamente reformulado é aquele em que o atual presidente terá tido um papel essencial, inclusivamente antes de ser presidente. Sim, desengane-se quem acha que o projeto desportivo da atual época era diferente dos anteriores. Isto é tudo parte da mesma história. Mas quero admitir que a humildade dos que erraram dará espaço suficiente a Lourenço Coelho para trabalhar, e a quem mais chegar para o ajudar. Esperemos que desta vez o projeto desportivo seja até uma ideia simples, condutora de bom futebol, que os adeptos compreendem e conseguem apoiar. Se isso acontecer, talvez alguém nos salve no final de contas. Mas confesso que a fé não é muita neste momento.
AS FINANÇAS DO CLUBE
E U não sou especialista na matéria, mas sei que é difícil criar um projeto desportivo forte quando as finanças do clube estão na mó de baixo. Neste momento, as contas do Benfica indicam que o clube terá de vender craques e reduzir a massa salarial, mesmo admitindo que a Liga dos Campeões entrará nas receitas da próxima época. É o problema dos projetos desportivos montados em cima de campanhas eleitorais. Relembre-se que tudo isto começa, entre outras coisas, com um investimento de €100 milhões destinado a seduzir os sócios a poucos meses das eleições. A partir daí, o que se viu foi o falhanço estrondoso desse investimento e os principais ativos desportivos do clube a sofrerem uma depreciação. Mas já sabemos como são estas coisas. Pergunte-se ao editor da folha de cálculo e ele terá sempre uma explicação perfeitamente lógica para tudo, pelo menos até deixar de ter. Nisto, como em tudo o resto, boa parte da solução residirá na capacidade de retomar um caminho de valorização substancial dos ativos, assente em sucessos desportivos e no bom futebol. Até agora sabemos muito pouco sobre como podemos lá chegar.
A GESTÃO DO BALNEÁRIO
L I uma entrevista de Pizzi e fiquei pasmado. Afinal o balneário do Benfica tinha um ambiente extraordinário e pouco ou nada se passou. Os atletas fizeram tudo o que deviam, os treinadores nunca tiveram problema algum com os atletas, e não parece haver mesmo razão nenhuma, pelo menos encontrada no balneário, para que não tivéssemos ganho tudo nestes últimos anos. Aliás, esse mal entendido terá levado a que injustiças fossem cometidas em relação aos referidos jogadores. Há muitas papas e bolos no Benfica e há até quem goste de repetir a dose, mas seria bom que o futuro do clube trouxesse um grupo de trabalho mais coeso, mais exigente e mais fechado, de preferência sem alguns dos jogadores que estão no atual plantel.
«Período experimental de Rui Costa já passou há muito. O que vemos hoje é um presidente hesitante, a quem parece faltar competência»
A LIDERANÇA DO CLUBE
O S meses passam e muitos adeptos continuam à espera de ver uma liderança forte no Benfica, de ver uma liderança à Benfica. O período experimental de Rui Costa já passou há muito - são menos de 6 meses mas pareceram anos. O que vemos hoje é um presidente hesitante, a quem parecem faltar competências de gestão e comunicação que, convenhamos, não se adquirem em 6 meses (às vezes nem em 6 anos). O que vou dizer agora é controverso, pois baseia-se em parte numa leitura da realidade do clube e por outro numa análise psicológica muito discutível, mas às vezes olho para Rui Costa e vejo um homem infeliz, vejo alguém que não parece confortável no lugar ocupado. É nessas alturas que estremeço. Até em períodos como este, conturbados e muito exigentes, seria de esperar que um presidente do Benfica recém-eleito mostrasse uma certa genica, uma fúria de viver, um entusiasmo que a vida lhe concedeu por via de um cargo único. Não é nada disso que vejo e é de tudo isso que o Benfica precisa.
A RELAÇÃO COM O PASSADO
Oúltimo desafio é talvez o que está na origem de muitos dos problemas. O Benfica continua hoje de costas voltadas para o passado. Todos nos lembramos daquilo que nos ensinaram desde crianças, da escola primária às salas da universidade, ou até na universidade da vida: aprender com os erros é uma qualidade fundamental. É verdade que Rui Costa disse, no seu jeito aparentemente convicto que parece sempre acusar uma certa fraqueza de espírito, ou inaptidão comunicacional, que os problemas estão identificados e que agora é que vai correr tudo bem. Eu olho em redor e não vejo nada disso. Vejo um clube que se recusa a reconhecer o seu passado recente e uma liderança que se mantém refém de tudo isso. Vejo uma liderança do Benfica que rejeita colocar um espelho à sua frente, talvez com medo de se envergonhar daquilo que vê. Temos todos direitos a novos começos, a não ser que a história se repita e nos conduza novamente ao pior dos tempos.