Por favor, não nos mordam o pescoço!

OPINIÃO05.08.202306:35

O futebol não pode tratar os adeptos como meros clientes do espectáculo porque os adeptos são a essência do futebol

SOU particularmente fã do futebol jogado pelo Sporting de Rúben Amorim. É criativo e consistente, ofensivo, mas equilibrado, rápido, mas organizado, e a equipa leonina deixa-me quase sempre a ideia de ser dominadora e não dominada. Mais do que isso: de estar bem preparada para não se deixar surpreender, o que não quer dizer, naturalmente, que seja imbatível. Não há equipas imbatíveis.

Mas o Sporting de Rúben Amorim, que já por mais de uma vez escrevi ter sido, na última época, suficientemente traída pelo calendário e pela incapacidade de recuperar dos oito pontos perdidos nas quatro primeiras jornadas, é uma equipa que joga, genericamente falando, bom futebol.

Adiou, creio, por tempo de mais, a inclusão de um atacante mais poderoso fisicamente que pudesse tornar mais eficaz a criação da equipa. Esse atacante esperam agora os adeptos que venha a ser o internacional sueco Viktor Gyokeres, e já não vale a pena falar do passado e muito menos bater mais no ceguinho.
 

O reforço Gyokeres com Pedro Gonçalves, Edwards e Matheus Reis - o leão está revigorado

DE momento o plantel leonino parece capaz, na verdade, de produzir um cenário bastante otimista, e logo que seja possível encontrar o tal novo médio defensivo (na posição 6), o tal jogador com presença física semelhante à de Ugarte, mais vocacionado para ganhar duelos na recuperação da bola, podemos antever um Sporting forte, equilibrado e suficientemente criativo para estar, na nova temporada, muito mais envolvido na discussão dos diferentes títulos e, obviamente, mais capaz de os discutir com os principais rivais.

Sou crítico de algumas das opções de comunicação de Rúben Amorim. Reconhecendo que é um extraordinário comunicador, e sabendo que pela comunicação se domina muito do que é hoje o fenómeno futebol, creio que Amorim usa, também, sempre que lhe parece mais conveniente, um discurso menos apropriado ao lugar que ocupa como principal gestor de uma SAD de futebol, no sentido em que gere, treina, lidera, potencia, os principais ativos dessa SAD.
 

NÃO é, certamente, Rúben Amorim um assalariado mal pago na sociedade desportiva dos leões. Reconhecido pela sua dimensão como líder e pela competência como treinador, Rúben Amorim deve ter melhorado muito as condições (que não seriam nada más) quando, na parte final do ano passado, prolongou até 2026 um contrato que, inicialmente, estava previsto terminar em 2024.

Essa decisão parece ter sido mais do que suficiente para se compreender o apreço, e o orgulho, que a administração de Frederico Varandas tem no treinador, pelo que se espera, sempre, que o treinador saiba igualmente mostrar o apreço e reconhecimento que tem por uma administração que, cometendo também erros, continua empenhada em dar as melhores condições ao treinador para levar a equipa a competir melhor, sem deixar de se preocupar com a indispensável recuperação do clube. O que quero dizer, e escrevi-o por mais de uma vez, é que nunca me pareceu que Rúben Amorim tivesse tido a atitude correta quando deu ideia de questionar demasiado decisões da administração, particularmente no momento da transferência de Matheus Nunes para o Wolverhampton. Lembram-se?!
 

Rúben Amorim, 38 anos, vai começar a quarta época no Sporting, depois de ter chegado ao clube em março de 2020

PODE Rúben Amorim, legitimamente, ter opinião diferente mas o que se espera de um treinador principal da equipa de um grande clube é que saiba manter-se leal e, sobretudo, solidário com as decisões da administração que lhe paga, porque é igualmente solidária com as decisões do treinador que se deve manter (enquanto perdura a relação contratual) uma administração, que nunca deve, pelo menos publicamente, mas até internamente, discutir as decisões técnicas ou disciplinares do treinador.

Do mesmo modo que a administração de Varandas não vem para a praça pública criticar o treinador por jogar com ou sem ponta de lança, também o treinador não deveria ter vindo, mais direta ou mais indiretamente, questionar o momento ou a negociação que levou Matheus Nunes ao futebol inglês.

JÁ no FC Porto, também o treinador tem, volta e meia, a tendência para usar o discurso para fora como arma de arremesso para dentro. Não foi uma vez nem terá, certamente, sido a última. O treinador portista é, na verdade, e reconhecidamente (o que não é sempre mau mas é péssimo muitas vezes), um homem com o coração demasiado ao pé da boca, como costuma dizer-se de todos os que, demasiadas vezes, dizem o que pensam sem pensar muito no que dizem. Por isso me parece que nem sempre o treinador do FC Porto foi capaz de evitar disparar críticas à organização interna da SAD portista, fraturando, porventura, relações com gente da estrutura, como se não fosse ele, à semelhança de Rúben Amorim e todos os outros em circunstâncias semelhantes, o principal (e mais bem pago) gestor da empresa onde trabalha.

Se querem os profissionais de futebol, a este nível, ganhar bem (ou, melhor, ganhar muito bem) devem aceitar as regras do jogo. Competir não é subverter; jogar não é distorcer; gerir não é censurar.

Em qualquer organização, mais ainda numa indústria mediatizada e tão impactante como o futebol, com uma dimensão emocional tantas vezes incontrolável, o debate entre estruturas deve permanecer interno até que terminem as relações contratuais. Para evitar choques!
 

 

OS mesmos profissionais do futebol que aceitam os benefícios da industrialização do fenómeno devem aprender a lidar com os aspetos positivos e negativos duma operação que continua, evidentemente, a ter uma natureza desportivamente muto competitiva, mas ganhou, também, uma forte componente empresarial, que deve encontrar, no contexto que vive, o melhor modelo de negócio, e bem sabemos como esse processo está ainda tão atrasado em tantos países, particularmente o nosso, onde muitos clubes vivem dramáticos défices e são dramaticamente geridos sob muita ganância e falta de critério. 

É verdade que os treinadores de futebol (atividade profissional dificílima nos tempos modernos e por isso tão bem remunerada nos principais clubes) são muitas vezes vítimas das más organizações, más políticas e má gestão, mas não são obrigados a conviver com isso. Se convivem é porque lhes interessa manter os contratos que têm.
 

UM treinador define um projeto, escolhe os jogadores (dentro das possibilidades do clube/empresa), organiza e planifica, treina, lidera, gere, diariamente, um grupo de cerca de 50 pessoas (25/30 atletas) e constrói uma equipa para competir. Deve contribuir para a integridade da competição, zelar também pelo respeito pelos adversários, defender o jogo e o espetáculo, porque é pelo jogo e pelo espetáculo que aderem os adeptos.

Não devem os treinadores sentir-se impedidos de se pronunciar sobre mercado de transferências, contratações, dispensas, numa ou outra circunstância excecional, até mesmo sobre política desportiva sempre que isso não ponha publicamente em xeque decisões da administração, que devem, também pelo treinador, ser discutidas, sim, nas reuniões internas, lugar próprio para o fazer.
 

Roger Schmidt, alemão de 56 anos, engenheiro de formação, treinador de futebol por paixão e profissão, foi campeão na Luz mas parece ter agora desafio ainda maior!

NO Benfica, até ver, o ainda novato Roger Schmidt ganhou muitos créditos, não apenas pelo título de campeão mas também pelo discurso, empatia com os adeptos, cumplicidade com o presidente. Mas no futebol tudo muda de um resultado para o outro. E mais ainda num clube como o Benfica, com tão forte tendência para entrar em euforia com a mesma facilidade, e velocidade, com que cai em depressão, sendo que, exatamente por isso, há anos que do ponto de vista de muitos benfiquistas o maior adversário do Benfica é, muitas vezes, o próprio Benfica.

Não devem, pois, os adeptos iludir-se, porque a euforia e a depressão e impaciência costumam criar atmosferas impróprias para as equipas competirem. Nesse sentido, bem sabemos como o FC Porto é a equipa portuguesa que melhor costuma lidar com as dificuldades, e que o Sporting nem sempre tem tido a coesão e espírito de unidade indispensáveis ao sucesso.
 

VOLTANDO à Luz e ao universo encarnado, pergunta-se: terá sido apenas por mera casualidade do destino que a equipa do Benfica, com exceção do tetra entre 2014 e 2017, não consegue ser bicampeã nacional desde as épocas 1982/1984, portanto, há quase 40 anos? Não foi certamente só por falta de maior qualidade na equipa, não foi só pelos jogadores de menor talento ou pela gestão desportiva mais deficiente. Foi, seguramente, também pelas atmosferas criadas, porque o futebol, ao contrário do que aparenta, vive muito do ambiente criado de fora para dentro, o que se compreende num jogo ainda jogado por pessoas e não por robôs com inteligência artificial.

O maior dos desafios postos aos encarnados para a nova temporada poderá ser mesmo, assim, o de conseguirem dominar as atmosferas emocionais que venham a ser criadas, pela expectativa, pela ansiedade de voltar a ganhar, pela teoria de que o melhor plantel (e é, na verdade, em teoria, o melhor plantel das equipas grandes) terá obrigação de chegar ao fim no primeiro lugar.
 

CABE, em grande parte, aos treinadores de Benfica, FC Porto e Sporting (o SC Braga correrá ainda, e por enquanto, por fora) serem capazes de controlar os contextos, manter o foco das suas equipas, criando-lhes, sempre, as melhores condições para jogarem bom futebol e competirem com determinação e paixão.

O futebol, mesmo tão industrializado, será tanto mais entusiasmante e empolgante quanto melhor for o jogo e o espetáculo e quanto maior for a empatia criada por treinador e jogadores com os adeptos.

Quanto a isso, nenhuma dúvida.

Pior, na verdade, do que ouvir Rúben Amorim, por exemplo, queixar-se de uma decisão da sua administração, é não ouvirmos, de todo, falar as estrelas do jogo e sentir que vivem o jogo com a mesma paixão dos que, na plateia, o seguem, vibram e aplaudem.

Se os clubes entendem que o silêncio dos protagonistas e o afastamento dos fãs defendem o futebol, então o futebol estará condenado. Não tratem os adeptos como meros clientes dum espetáculo nem lhes mordam o pescoço, porque a essência do futebol é outra. Com euforias ou com depressões!