Por baixo da ponta do icebergue

OPINIÃO03.11.202003:00

Confesso que não sei bem o que pensar sobre o que está a acontecer a algumas das pessoas que dependem exclusivamente do futebol para subsistir.


Tenho plena noção que estes são tempos desafiantes e que este é um flagelo mais abrangente, transversal a todas as modalidades e a vários setores de atividade, mas a realidade do futebol é a que conheço melhor.


Não me refiro, naturalmente, a quem trabalha em alta competição. A quem pertence aos escalões profissionais. A situação aí também não será a melhor, mas está alicerçada numa estrutura diferente, com mais meios e condições, com outra capacidade. É mais fácil suavizar contratempos pontuais e impactantes.


Refiro-me, em particular, ao que está a acontecer a um nível mais baixo, nos campeonatos amadores (nacionais e distritais). Refiro-me ao dilema que vários jogadores e funcionários estão a viver neste exato momento.


É importante que se saiba que há pessoas que não recebem o que lhes é devido há vários meses e que por isso têm a vida de pernas para o ar. Pessoas que não têm outras fontes de rendimento nem idade para ter outras oportunidades. A realidade dessas é dramática.


Há ordens de despejo em curso e falta de comida em muitas mesas de família! Há contas por pagar! Há doenças crónicas a galopar porque não há dinheiro suficiente para comprar medicação! Há ausência de uma explicação e promessas em vão!


Da saúde emocional e mental de quem sofre na pele tudo isto é melhor nem falar. São contas de outro rosário, que o tempo não tratará com meiguice.
Isto é grave. Muito grave.


Se formos a pensar nos porquês, se tentarmos perceber o que levou a esta situação, chegamos à conclusão que algumas resultam de imponderáveis, mas a maioria está relacionada com má gestão.
De vez em quando aparece no futebol (sobretudo no de segunda linha) gente sem escrúpulos nem princípios, sem caráter nem valores. Gente que sabe bem ao que vem. Estão identificados, mas ninguém lhes põe travão. É fácil cheirá-los à distância: surgem sempre como uma espécie de Messias, como a solução ideal para todos os problemas. Dizem que é o projeto desportivo que os move, que querem apenas recuperar o bom-nome da instituição.... só que não.


Quando secam a carcaça, trocam de gravata, mudam a morada no GPS e apontam baterias para a vítima que se segue. São uns abutres.


Apesar disso, passeiam impunidade, enquanto rebentam com o que de mais puro há no futebol. São o retrato perfeito do pior que há na sociedade.


Tem que haver uma forma do futebol identificar esta gente e levá-la à justiça, porque só assim cuida das pessoas boas. Das que jogam e treinam, das que cuidam dos equipamentos, do trabalho administrativo e da relva. Das que cozinham e asseguram a limpeza.