Otávio, um de nós

Otávio, um de nós

OPINIÃO20.06.202306:30

Seja qual for a maleita – xenofobia, clubismo patológico, um pouco das duas – só nos compete sermos todos um bocadinho melhores

L EMBRO-ME de há uns anos ter tido uma conversa com um amigo jornalista, dias depois de o Pepe ter enfiado um cotovelo no nariz do Taarabt, em que este me explicava que, contrariamente ao seu historial de agressões no relvado, o Pepe era na verdade um tipo estupendo e muito afável fora dos relvados. Tinha apenas um pequeno problema, nomeadamente ter desenvolvido este hábito de mostrar a sua competitividade de uma forma recorrentemente violenta, evidenciada aliás ao longo de toda a carreira.

Pepe é um dos exemplos mais paradigmáticos dos amores e ódios do futebol português. Comecemos pelas coisas boas. Ganhou tudo o que havia para ganhar no futebol de clubes, tendo sido fundamental em todos os clubes por onde passou. É um dos jogadores mais importantes de sempre no futebol de seleções, tendo estado presente ao mais alto nível nas mais importantes conquistas da seleção A. Ah, e é reverenciado por colegas de todos os clubes. Como se isto não bastasse, Pepe joga futebol de alta competição há mais tempo do que muitos adeptos andam cá. Em suma, a carreira de Pepe confunde-se com as últimas décadas do futebol português naquilo que este teve de mais notável. Desengane-se quem pensa que o futebol português deve tudo a um homem só. Cristiano Ronaldo não teria atingido o que atingiu se não tivesse tido a sorte de jogar com colegas como Pepe. Em suma, o futebol português é hoje maior por causa de jogadores como Pepe. Infelizmente para ele, isto não conta a história toda.

É possível, apesar de todos os elogios, não gostar de Pepe? Perguntem aos adeptos de outros clubes que não o Futebol Clube do Porto e a resposta de grande parte será um sonoro sim. Não só é possível como estamos cá para o afirmar. A razão é relativamente simples: a juntar a todas as coisas positivas que distinguem a sua carreira, Pepe junta uma personalidade dentro de campo que se manifesta através de atos violentos, não raramente com a permissão ou cegueira temporária dos árbitros, colocando em causa a integridade física de colegas de profissão. Desde que me lembro de Pepe a sua competitividade sempre se manifestou desta forma, como uma espécie de ambição sem olhar a meios. Talvez por isso, no dia em que deixar os relvados, Pepe venha a ser recordado por muitas coisas boas, mas também será lembrado pela tendência para um jogo frequentemente agressivo, pouco leal, por vezes, ou muitas vezes, a roçar a violência. Feito este enquadramento, importa perguntar: alguma vez me passou pela cabeça assobiar o Pepe enquanto assistia a um jogo da seleção? Jamais.

Que Pepe, Deco ou tantos outros tenham nascido no Brasil sempre me pareceu irrelevante para o caso, e penso que o mesmo é verdade para muitos adeptos de futebol. Pepe e Deco são, aos meus olhos, tão portugueses como eu, e o mesmo se aplica a qualquer outro cidadão brasileiro entretanto naturalizado. Mas não é só aos meus olhos. Não há nenhum progressismo ou particular virtude na afirmação disto. É da lei, e quem ainda a questiona com ímpetos de nacionalismo bacoco está a soprar contra o vento na esperança de que daí possa surgir um Portugal melhor. Da minha parte, e, creio, da parte da maioria dos portugueses, esse pensamento caduco, expresso em tons de racismo e xenofobia, terá sempre a oposição necessária, nas urnas ou nas nossas vidas, para que, no final, possamos afirmar Portugal como um país plural na sua génese, acolhedor e inclusivo. O que na cabeça de alguns é uma ameaça à nossa identidade é hoje, para muito português de gema, uma oportunidade para expandirmos e aprofundarmos o caldeirão cultural que define Portugal enquanto nação. Que esse processo aconteça é algo que deve ser celebrado, e nunca questionado. E todos podemos melhorar nesta matéria, porque todos vimos de um lugar de racismo enraizado na sociedade.

Facto: o nosso futebol sempre beneficiou, e muito, de gente que não nasceu em Portugal. É uma burrice histórica não ver isto. E por isso é triste que episódios como aquele ocorrido há poucos dias com Otávio, em pleno jogo da seleção nacional realizado no Estádio da Luz, possam dar azo a manifestações discriminatórias e interpretações xenófobas. E é importante não deixar que o tema seja excessivamente capturado por esse debate. A principal origem da assobiadela foi outra. O que aconteceu com Otávio, tal como aquilo que aconteceu com João Mário há poucos meses, decorre de um contexto em que as preferências clubísticas estão acima do amor à seleção nacional. A xenofobia, quando a há, só vem depois.

Se por um lado compreendo que o clube venha primeiro na cabeça de um adepto, por outro parece-me algo deprimente que alguém decida demonstrar isso ao vivo num estádio ao qual se dirigiu para ver jogar uma equipa com jogadores de todos os clubes. Sim, o Otávio é um jogador quezilento que nos últimos anos evoluiu para se tornar um sinónimo de uma certa forma de estar adjetivada de à Porto. Mas, caro concidadão, se isso é tudo o que vê quando olha para o Otávio, talvez seja melhor ficar em casa nos próximos jogos da seleção do seu país, ao qual o Otávio pertence de pleno direito.

De resto, não é por acaso que tantos benfiquistas que eu conheço são capazes de elogiar o Pepe ou o Otávio ao mesmo tempo que os odeiam. Acontece porque reconhecem neles uma competitividade acima da média e características que por vezes faltam aos nossos jogadores. Se aí reside um erro interpretativo - é possível ganhar sem cultivar uma forma de estar idêntica à destes jogadores -, não é menos verdade que isso torna jogadores como Pepe ou Otávio melhores do que a maioria. E é isso que justifica a sua importância no Futebol Clube do Porto, como é isso que justifica a sua convocatória para a seleção nacional.

Podemos, como é evidente, não gostar do Otávio e achar até que o jogador fez pouco, a olho nu, para conquistar o comum adepto da seleção nacional. É um facto que hoje vivemos muito para essas manobras artificiais de relações públicas. Talvez uma entrevista ao Daniel Oliveira ou à Fátima Campos Ferreira ajude. Enquanto isso não acontece, vamos exigindo que o Otávio se esforce por ser um pouco mais um dos nossos, um tuga a sério, apesar de não sabermos bem o que isso é. Eu, que já pensei no Otávio algumas vezes desta forma, e penso até que já o critiquei desta forma em fóruns mais ou menos abertos, admito que sei de onde vem esse sentimento no exato momento em que ocupa espaço no meu cérebro. Vem de um lugar de clubismo exacerbado, o tipo de condição que tendemos a admitir em nós mesmos, mas vem também de um lugar de alguma imbecilidade e de xenofobia, que, ou eu combato nos meus comportamentos diários, ou então aceito e pratico de plena consciência, correndo o risco de ser adjetivado como xenófobo, tal e qual como vem no dicionário.

Tudo isto sofre de alguma ironia. Todos sabemos qual é o melhor antídoto para esta xenofobia cruzada com preferência clubística. Basta que os próximos naturalizados ganhem uns troféus pela seleção e apareçam mais vezes na área adversária a marcar um golo, para logo os adotarmos como tugas e lhes espetarmos um bigode na cara ou um garrafão de vinho na mão. Se um dia jogarem pelo nosso clube, então, nem se fala. É como se passassem a ser da família. É aliás a única coisa boa nesta xenofobia light: raramente resiste ao resultado final da equipa pela qual torcemos.

Por muito que isso custe ao benfiquista que olha para o Otávio na seleção e só consegue ver um tipo de azul e branco a insultar benfiquistas, ninguém com uma memória funcional poderá afirmar que foi a primeira vez que um jogador convocado para a nossa seleção se tornou conhecido por dizer coisas idiotas sobre o nosso clube. Não foi a primeira nem será a última. Se faz parte de um espectáculo ocasionalmente triste? Faz. Chama-se futebol português. Se todos ajudamos um bocadinho à festa? Seguramente. Não nos façamos tanto de virgens ofendidas quando tantas vezes ofendemos os outros. O exemplo deve vir de cima, e neste caso o exemplo deve ser a aceitação plena do Otávio na seleção, ou, se não conseguirem mesmo, a rejeição da seleção, que também sobreviverá, nem que seja com uns adeptos a menos.

A cultura de um clube, por muito que eu próprio já a tenha criticado aqui, não é critério para uma convocatória da seleção. Nunca foi e nunca será. Eu cá estarei para criticar o Otávio e o seu clube as vezes que entender, mas, por muito que o Otávio me irrite enquanto jogador do FCP, e por muito que o meu clubismo se exceda quando olho para a seleção, por vezes cedendo até à xenofobia, nada disso deve obrigar o Otávio a ser um jogador diferente do que é, não o obriga a pedir-me desculpa na bancada como se tivéssemos de ser amigos, como também não o deve obrigar a malabarismos de relações públicas para ser outro atleta, e seguramente não o deve obrigar a falar “português de Portugal”. Também nunca ouvi uma palavra em português corrente ao Raphael Guerreiro e nunca me passou pela cabeça odiá-lo.

Bem vistas as coisas, o Otávio não tem obrigação nenhuma de ser um raio de luz e tolerância num futebol onde, convenhamos, o ódio é habitualmente aceite como uma das partes mais divertidas do espectáculo. O Otávio é um jogador de futebol, só isso. Por sinal, dos bons. Tem a obrigação de dar o máximo dentro de campo quando representa a seleção. É isso que tem feito, tanto quanto consigo perceber, e é isso que continuará a fazer, até marcar golos ou ganhar troféus suficientes para, inevitavelmente, se tornar um de nós - como já devia ser por esta altura. Quanto a nós, seja qual for a maleita - xenofobia, clubismo patológico, um pouco das duas - só nos compete sermos todos um bocadinho melhores.