Obrigação de vencer
Está mais do que na hora de mandar o stress pós-traumático às malvas e seguir em frente com a vida
Nem sempre acontece, mas esta época tem sido quase sempre assim. Mais do que as vitórias consecutivas arrancados a ferros, aos adversários ou aos árbitros, em período de descontos, mais do que o triste espectáculo que alguns dos seus funcionários têm proporcionado fora dos relvados, para o qual as suspensões parecem sempre poucas e curtas, aquilo que tem verdadeiramente chamado a atenção nos jogos do FC Porto - exceptuando o jogo de estreia na Liga dos Campeões - é o futebol sofrível que tem sido praticado.
Já vi muitas equipas do FCP, mas raras são as que fazem a bola chorar tanto. Tal como muitos outros adeptos do Benfica ou de outros clubes, vejo os jogos deste adversário na expectativa de que algo mau lhes aconteça. Faz parte. Mas ninguém é imune ao bom futebol, mesmo o dos rivais, ou indiferente a quem joga pedras, como é o caso. As ideias de jogo deste FC Porto são as mesmas da época passada, que já não eram grande coisa, com um futebol frequentemente refém de um chuveirinho que faz jus à máxima da água mole em pedra dura. Os reforços, que prometiam impacto imediato, conseguiram o impensável e somaram tédio a um jogo já de si entediante. Certo, há toda uma estética da resiliência que, se os resultados continuarem a sorrir, tornará este futebol horrível mais um tratado de espírito combativo ou outro eufemismo qualquer - só não lhe chamem tratado de futebol. Arrisco dizer que nem os portistas gostarão daquilo que se tem visto. Ainda assim, apesar de tudo isto, desengane-se quem pensa que estas palavras são uma antevisão do jogo de sexta-feira.
Já vou à antevisão, mas não consigo deixar passar. Bem sei que muitos portistas se sentem representados pelo atual treinador, talvez mais pela identidade que este simboliza do que pela qualidade da proposta futebolística nos dias que correm, mas não deixa de ser irónico observar a forma como diferentes treinadores e ideias de jogo merecem também diferentes análises e sentenças. Imagine-se por momentos que a estratégia de Roger Schmidt para os últimos 10 minutos de cada jogo passava por olhar para o banco, avaliar as diferentes opções ao seu dispor, e colocar invariavelmente um quinto avançado em campo, começar a gritar com árbitros de cada vez que um jogador da sua equipa se atira para o chão, e dar instruções muito concretas ao extremo entretanto colocado em campo para que este dirija o centésimo oitavo cruzamento do jogo para a cabeça do Marcano. Se tudo isto falhasse, bastaria esperar que um dos avançados ou dos extremos conseguisse sacar um penalty ao árbitro para depois se gabar disso na flash interview. Ou muito me engano ou Roger Schmidt já teria sido despedido, irradiado e deportado.
Felizmente nada disto define o Benfica desta época, que tem os seus problemas para resolver mas parece aos poucos querer regressar a níveis de qualidade exibicional e consistência mais próximos da época passada. O plantel apresenta opções de sobra para construir um onze muito forte, tem um jogador como poucas equipas no mundo terão (Di Maria), e já pudemos vislumbrar o potencial das diferentes opções para permitirem diferentes sistemas de jogo e variações de jogo em cada sistema, mesmo que nem todos estejam já adaptados ao futebol português. A exigência benfiquista não me deixa ir mais longe nos elogios, só nas expectativas. Faz parte. Não fui eu que inventei as regras do meu clube. A segunda época de qualquer treinador campeão no Benfica é uma missão dura, mas também pode ser muito gratificante, se ele souber levar a água ao nosso moinho. Essa responsabilidade pratica-se diariamente, mas terá esta sexta-feira um daqueles momentos importantes de definição.
Tudo somado, face ao que já se viu esta época, dos onzes titulares às opções no banco, do potencial das opções ao futebol já demonstrado, dos treinadores aos dirigentes, passando como é óbvio pelo estádio em que o jogo será disputado, o Benfica tem absoluta obrigação de mostrar ao que vem, que é como quem diz, vencer o FC Porto e afirmar a sua ambição intransigente de revalidar o título de campeão nacional. Bem sei, o microcosmos em que estes jogos acontecem, tantas vezes isolado da realidade do futebol praticado nas restantes 32 jornadas, tem sido comprovado ao longo dos últimos anos. Desde 2010 que o Benfica não consegue duas vitórias consecutivas sobre este adversário, o que diz muito sobre a forma como estes jogos são disputados - e invalida qualquer conclusão que pudesse ser precipitada pela minha crítica inicial ao futebol horrível do adversário da próxima jornada. Mas é também daí que vem a obrigação de vencer.
Mais do que uma vitória de um futebol bonito contra um futebol feio, mais do que a vitória de uma certa civilidade contra a ausência desta, este jogo deve ser sobre a capacidade de evidenciar todas as qualidades objetivas que o Benfica tem, como se fosse outro jogo qualquer e não o jogo de todos os jogos, o apagão de todos os apagões. Entrar de faca nos dentes e sair com um sorriso nos lábios. Está mais do que na hora de mandar o stress pós-traumático às malvas e seguir em frente com a vida. Se isto acontecer, acredito que o Benfica vencerá com naturalidade e fará o seu principal adversário no campeonato jogar ainda pior na jornada seguinte, e assim sucessivamente, até o período de descontos se esgotar e o mau perder levar a melhor mais uma vez. Não devemos exigir menos do que isto.