O que sobra do Mundial
Argentina não ganhou pelo bom futebol. Escolha do novo selecionador deve ter em conta perfil que sem sempre se ajusta ao treinador de clubes
DISSE o treinador do Real Madrid, em entrevista ao diário italiano Corriere dello Sport, a uma semana do fim do torneio, que do «Mundial nada restará». Explicava Carlo Ancelotti que «nada de novo» viu no Catar em termos puramente futebolísticos. Daqui se infere que até mesmo os mais cotados técnicos comparam o Campeonato do Mundo às feiras internacionais onde os melhores de cada setor apresentam os novos produtos, projetos e ideias - quem vai lá sai mais rico em conhecimento. Não deixa de ser uma tirada de alguma ingenuidade, pois há muito tempo que os Mundiais são um reflexo do futebol praticado nos clubes e se alguém quiser ver alguma coisa de novo a brotar então mais vale observar atentamente o trabalho de alguns treinadores que têm o recurso que nenhum selecionador possui: tempo.
É por isso que a escolha do próximo selecionador nacional deve ser muito ponderada. Cada um de nós, enquanto treinadores de bancada, tem uma ideia clara do que deseja para a Seleção, mas pode ser demasiado romântico pensar que uma nova abordagem de jogo surge apenas porque sim. Se fosse tão fácil o Brasil teria sido campeão ainda mais vezes e Bernardo Silva e Kevin de Bruyne jogariam sempre por Portugal e Bélgica, respetivamente, como o fazem no Manchester City. Fernando Santos foi acusado de ser demasiado conservador e não ter conseguido extrair o elevado talento individual dos jogadores portugueses para um futebol mais atrativo, criativo e com a arrogância das grandes equipas, mas temo que qualquer que seja o substituto venha a sentir o mesmo tipo de dificuldades.
Não há uma fórmula mágica para pegar em jogadores de vários clubes e países e torná-los numa equipa com uma identidade própria, como a Espanha/Barcelona de 2010 ou a Alemanha/Bayern de 2014. Isso aconteceu nos últimos 20 a 25 anos com Portugal apenas uma vez, no Euro-2000, em que os jogadores estavam espalhados pela Europa mas a geração era a mesma, jogava junta desde as seleções mais jovens e quase que dispensava treinador. Ainda assim não ganhou. Aqueles que venceram, 16 anos depois, foram operários de várias classes, idades e proveniências, sem um chão comum no passado e que se foram ajustando uns aos outros dentro de princípios rígidos e, acima de tudo, muito práticos.
A Argentina ganhou o Mundial porque o treinador, Lionel Scaloni, montou uma equipa em torno do seu melhor jogador (Messi) e não porque tenha sido a seleção que melhor futebol praticou. A gestão e estratégia para competições curtas como Mundiais ou Europeus não é a mesma para futebol de clubes e é por isso que a história do futebol está recheada de treinadores que só tiveram sucesso em seleções. Porque quando transitaram para as maratonas e a pressão dos campeonatos e taças evidenciaram fragilidades que se disfarçam num trabalho não diário. Daí considerar cada vez mais que o perfil de selecionador (seja para que seleção for) tem de ser necessariamente diferente. Alguém que não precise de ser bom a cada três ou quatro dias mas que possa ser muito bom apenas de tempos a tempos.
DO Catar nada surgiu de novo no plano de jogo, mas é justo dizer que houve uma pequena revolução com o alargamento do tempo extra. Ficará para a história, por exemplo, aquele final de jogo entre Argentina e Países Baixos para os quartos de final, tal como alguns jogos da terceira jornada da fase de grupos resolvidos nas longas mas justas e adequadas compensações. Com o regresso das competições nacionais, a decisão ficará dependente do poder de cada federação e já assistimos a diferenças: a Premier League decidiu manter tudo como estava, mas na Turquia, por exemplo, os juízes têm instruções para seguir as diretrizes emanadas no Catar por Pierluigi Collina e já assistimos a jogos de 100 minutos. Haverá motivos válidos para voltar à velha ordem e um deles é a sensatez de não mudar regras a meio da época. Mas podemos fazer já a contagem decrescente para as primeiras queixas dos treinadores quando o resultado não for o mais favorável e a placa mostrar apenas três ou quatro minutos. 3,2,1...