O que se fala sobre futebol
Todos sabem analisar lances e decisões, apesar de nunca terem sequer pisado um relvado
NOS dias que correm, qualquer advogado, médico, mecânico, economista, político, gestor, empresário ou carpinteiro sabe mais sobre lances do que árbitros, videoárbitros, árbitros assistentes, quartos árbitros, ex-árbitros e comentadores de arbitragem. Esta é a conclusão a que se chega depois de ler, ouvir e ver tudo o que acontece na ressaca de cada jornada, sobretudo no que diz respeito aos jogos que envolvem FC Porto, SL Benfica e Sporting CP.
Hoje em dia qualquer pessoa que comente em televisão e na rádio ou que escreva para um jornal ou rede social é perita em arbitragem. Sabe mais sobre penáltis, expulsões, advertências, foras de jogo, protocolos e cargas ilegais do que aqueles que, durante anos a fio, fizeram disso a sua profissão, o seu trabalho diário.
Todos os que comentam a esse nível conhecem as regras de cima para baixo, apesar de nunca terem pegado no livro das leis. Todos sabem analisar lances e avaliar decisões, apesar de nunca terem sequer pisado um relvado.
Confesso que gostava muito de ter a capacidade de absorver experiência e know how técnico sem nunca ter frequentado a escola onde isso era ensinado. Não está em causa, como nunca esteve, a liberdade de opinar, que assiste a qualquer pessoa, seja ela quem for. O futebol é para ser vivido, sentido e falado por toda a gente, em todas as suas vertentes (arbitragem incluída).
O que realmente incomoda é perceber que a maioria dos comentários produzidos carecem de fundamento, são falsos ou estão tecnicamente errados. E, de cada vez que alguém profere convictamente uma mentira em espaço público, sob o manto protetor da liberdade de expressão, está a contribuir ativamente para estragar o que muita gente boa tenta construir.
Mas não é só isso. A esmagadora maioria dessas análises são produzidas por comentadores afetos a clubes, a quem é oferecido, sob a forma de avença, determinado espaço mediático.
Quase todos, com honrosas exceções, encarnam a personagem de adepto ferrenho, prestando-se a um papel que, muitas vezes, nem os próprios se reveem.
Isso torna as suas opiniões profundamente parciais e pouco credíveis, porque demasiado coladas à verdade ideológica que aceitaram defender.
Depois ainda há os que escolhem prestar-se a berrarias histéricas, ao estilo de discussão de taberna, onde a ofensa é quase sempre a arma de arremesso preferencial. Tudo sublinhado por uma doentia e muito notória parcialidade de opinião.
Quem, de verdade, acredita em alguém assim?
Mas o pior mesmo nem é ouvir (ou ler) a loucura enraivecida de uma ou duas dúzias de pessoas que fazem o que os outros lhes mandam ou o que o coração os impele. O pior é concluir que é nisto que se tornou a análise ao futebol, em Portugal.
O desporto que mais paixões desperta no planeta, aquele que movimenta milhões e milhões de euros (e pessoas) e que é protagonizado por talentos de exceção, é semanalmente reduzido a uma análise patética, que visa a menos importante das suas variáveis.
Não se discute o que importa nem se reflete seriamente sobre o muito que há para mudar em matéria de arbitragem, de regulação, de ética comportamental, transparência e afins. Fala-se sempre e só de árbitros e das suas decisões, de vermelhos e de penáltis, de erros a favor e erros contra, como se toda a indústria assentasse aí. Apenas aí.
A nossa incapacidade em sermos o que realmente devíamos ser é gritante. Chocante até. Repete-se todos os dias, agudiza-se todas as semanas e não há nada nem ninguém que pareça comprometido em querer alterar o rumo dos acontecimentos.