O que mudou o sentido das coisas

OPINIÃO01.09.202003:30

Desde o início do período de confinamento, sobretudo quando foi necessário aligeirar os condicionamentos impostos à prática desportiva, que se sentiram as diferenças de opinião entre a parte governamental do desporto e a da saúde, com esta última muito resistente para acolher as propostas que a área do desporto ia colocando.
É certo que o mesmo ocorreu também em outros setores sociais com decisões políticas, muitas vezes, reféns dos especialistas de saúde no que concerne à decisão da escolha de risco, a qual carecendo de fundamentos científicos é, acima de tudo, política. Mas no desporto, pelas características próprias de muitas modalidades desportivas, onde a questão do distanciamento físico e o contacto são inultrapassáveis, o problema assumiu uma dinâmica especial.
Quando a 31 de julho foi anunciada a resolução do Conselho de Ministros para a retoma, a partir de 1 de agosto, do treino e das competições desportivas, os responsáveis da saúde, designadamente a Direção-Geral da Saúde (DGS), devem ter tido a noção da relevância e dimensão daquela decisão, necessitando de 24 dias para dar a conhecer ao País as orientações que permitissem cumprir o disposto ministerialmente.
Um longo período que, ainda assim, foi insuficiente para cumprir, na íntegra, a resolução do Conselho de Ministros, porque parte da atividade desportiva nacional (cerca de 60%) não foi contemplada. E se é compreensível um regime de gradualismo na retoma das atividades desportivas, ela não deve ocorrer a um ritmo que coloque em causa a própria sobrevivência dessas atividades.
Esta complexa situação, na linha de outras anteriores, entre aquilo que foi a decisão política e as regras técnicas que a deveriam sustentar, ajuda a perceber as peripécias que envolveram a anunciada declaração de retoma dos treinos e atividades competitivas das federações.
As federações desportivas com modalidades de pavilhão receberam da parte da DGS o documento orientador consolidado para a retoma dos treinos e competições desportivas. Entre manter as atividades todas paradas ou libertar os escalões seniores, optaram, e bem, por aceitar, desde logo, essa possibilidade.
Nesse documento estabelecia-se, entre outros aspetos, que «as federações e clubes podem considerar (sublinhado nosso) a realização de testes laboratoriais para SARS-CoV-2 aos praticantes das modalidades desportivas, de acordo com a estratificação do risco da modalidade desportiva (Anexo 2), o risco geográfico (incluído a mobilidade dos praticantes) e a situação epidemiológica a nível regional e local), bem como os recursos disponíveis». E sobre a realização de testes acrescentava-se um quadro explicativo em função do risco da modalidade (baixo, médio, alto).
Nesse quadro indicava-se a realização de testes aleatórios 48 horas antes da competição sempre que ocorressem competições entre equipas de zonas com transmissão comunitária ativa para as modalidades de risco médio e testes até 48 horas antes da competição para as modalidades de risco alto. Mas o documento era omisso em relação à estratificação de risco por modalidades (o anexo 2 estava em branco), o que só veio a ser conhecido quando o documento foi publicado, com critérios que revelam desconhecimento das características técnicas de algumas modalidades.
No dia 25 de agosto, terça-feira, o documento foi tornado público, mas a redação havia sido alterada. O fim de semana conduziu a uma mudança semântica. Onde antes se lia «podem considerar» passou a estar «considerarão».
Em torno desta alteração podemos fazer variados exercícios interpretativos. Mas o que parece óbvio é que de uma possibilidade se passou a algo bem mais imperativo. Ser obrigatório que clubes e federação desportiva nas modalidades de risco alto considerem a realização de testes prévios à competição. O resultado dessa consideração não é fixado. Aparentemente podem até decidir num sentido ou noutro. Esta dualidade de possíveis interpretações esconde o verdadeiro problema.
As organizações desportivas têm competências desportivas. Não têm competências sanitárias. Mas devem ter responsabilidades sanitárias. E, por isso, o ónus de uma decisão sanitária desta dimensão - a realização ou não de testes - não pode ficar ao livre arbítrio das organizações desportivas. Em tese, admite-se até que, em algumas organizações desportivas, os respetivos departamentos médicos pudessem proceder a essa avaliação. Mas todos sabemos que na esmagadora maioria das organizações esses recursos não existem. E, assim sendo, quem tem de decidir se a situação justifica ou não a realização de testes são as autoridades de saúde pública. E porque não o fazem?
A DGS sabe, mas não o quer dizer, que não existe capacidade instalada (logística e financeira) para testar previamente à competição os atletas das modalidades classificadas de risco alto. A DGS pede o que sabe ser impossível de realizar e admite o que também sabe não haver dinheiro para pagar.
Nos escalões seniores das modalidades de risco alto existem acima de 13 000 atletas, que é um número equivalente à capacidade média diária que o país tem para realizar este tipo de testes. E mesmo que a capacidade fosse superior envolveria um custo financeiro incomportável (perto de 1 milhão de euros?) por cada fim de semana de competição.
Em vez de assumir esta impossibilidade, que até é compreensível, a DGS impôs uma redação equívoca que transfere para os clubes e federações desportivas o ónus da responsabilidade da realização dos testes, contextualizando um conjunto de circunstâncias. Mesmo sabendo que se, por hipótese, uma parte dos clubes e as federações desportivas daquelas modalidades se decidissem pela realização de testes, não havia condições de responder.
Sejamos, por isso, todos claros. A retoma das atividades desportivas do País comporta riscos. Riscos que devem ser minimizados. Mas esse objetivo não pode ser atingido através de medidas que se sabem impraticáveis. Abandonemos as tergiversações semânticas e falemos ao País de modo frontal e claro.

*Presidente do Comité Olímpico de Portugal