O golo irregular da Argentina
Quando Messi marcou, havia um jogador suplente momentaneamente em campo
P ASSOU despercebido na altura, mas a verdade é que o terceiro golo da Argentina (no jogo da final do Mundial com a França) foi tecnicamente ilegal. Para quem não viu, conta-se muito rápido: quando Messi empurrou a bola para a baliza adversária, encontrava-se um jogador suplente, momentaneamente, dentro do campo. O referido atleta tinha entrado no relvado pela linha lateral, antecipando assim os festejos de um momento épico para a sua seleção, para o seu país.
Ora a letra da lei (repito, a letra da lei...) é clara: se após a obtenção de um golo e antes do jogo recomeçar, o árbitro notar que havia uma pessoa a mais em campo (seja ela um suplente, técnico, jogador substituído ou expulso), esse golo deve ser anulado e a sua equipa sancionada com um pontapé-livre indireto, no local onde o elemento se encontrava.
Em tese, a regra faz sentido porque, de facto, nenhuma equipa deve beneficiar de um golo se estiver em vantagem numérica e tirar vantagem do facto de ter um elemento a mais dentro das quatro linhas. Mas é importante que se perceba qual o verdadeiro alcance desta disposição regulamentar. O que o legislador pre- tende dizer é que, por força dessa irregularidade, nunca deve haver benefício para quem marca ou prejuízo para quem sofre. Ou seja, o que esta premissa legal ambiciona é evitar que um qualquer elemento de uma equipa entre em campo, de forma deliberada e batoteira, para desequilibrar a balança do resultado a seu favor.
Ora, sejamos honestos, não foi isso que se viu naquele momento da final do Catar-2022. O que sucedeu é muito simples de descrever: um jogador suplente da Argentina teve um gesto impulsivo e perfeitamente compreensível, considerando o momento excecional de pressão emocional, e não controlou o seu instinto. Acabou por pisar o terreno de jogo por meia dúzia de centímetros, por querer celebrar um golo certo da sua equipa.
Parece-me claro que não houve intenção de quebrar as regras e infringir. Não houve por parte daquele suplente nenhuma malícia, que não retirou vantagem desportiva da situação nem prejudicou a equipa que sofreu o golo. Foi apenas um episódio tonto, inócuo, irrelevante e à margem do jogo.
A pergunta que se impõe, então, é simples: alguém de boa-fé achará mesmo que o espírito que preside à regra pressupõe anular golos por causa de impulsos destes? Alguém achará mesmo que seria justo e adequado invalidar um lance tão decisivo com base num subterfúgio técnico, que não foi pensado e criado para punir instantâneos destes? Claro que não!
E é aqui que importa percebermos bem a diferença entre letra e espírito da lei. Entre teoria e prática. Entre inflexibilidade e bom senso. Se ajudar à reflexão, pensem assim: é ou não verdade que, no lançamento lateral, a bola tem de ser lançada no exato local de onde saiu? É e está na letra da lei, mas raramente acontece e ninguém leva a mal que assim seja, já que a dinâmica do jogo aceita esta ilegalidade inofensiva. Outra: é ou não verdade que todas as faltas no meio-campo têm de ser executadas no local onde aconteceram? É e também está na letra da lei, mas na prática ninguém espera que um árbitro mande repetir um lance destes, só porque o pontapé foi efetuado dois ou três metros ao lado. É ou não é verdade que há sempre vários jogadores aos empurrões e agarrões nas áreas em todas as bolas paradas? É e a letra da lei e pune-as com falta atacante ou pontapé de penálti, mas espera-se que isso aconteça só quando a infração for flagrante e determinante no lance. Existem muitos casos em que o futebol aceita o não cumprimento da norma escrita, por ser redundante ou castradora da dinâmica do jogo.
No caso do golo de Messi, seria um crime lesa-futebol se esse lance fosse anulado naquelas circunstâncias.