O futebol que o dinheiro não consegue comprar
O futebol não é o primeiro desporto em que a Arábia Saudita investe e seguramente não será o último
«EU passei sete meses de férias na China.» Foi assim que Carlitos Tévez, um dos mais entusiasmantes avançados argentinos das últimas duas décadas, descreveu a sua passagem pela então sonante superliga chinesa. Bom, de sonante só tinha mesmo o nome de alguns dos jogadores e treinadores contratados. Quanto às equipas da dita superliga, eram nomes irreconhecíveis que só algum interesse financeiro ou moderada curiosidade a uma pesquisa Google de distância nos diria serem clubes apropriados por gigantes empresariais da construção civil a operar num país que representa 18.5% da população mundial.
Tévez terá recebido, ao câmbio atual, cerca de 37 milhões de euros pelas suas férias. Anos depois, nem a generosidade da superliga inventada por gente com dinheiro a mais o impediu de constatar o óbvio, reconhecendo, de forma bem humorada, que o treinador e o presidente do clube tinham razões de queixa legítimas face ao seu desempenho, e também que o futebol chinês nem daqui por mais 50 anos será capaz de criar a capacidade de que precisa para ser uma potência futebolística mundial. Depois de deixar a China, Tévez regressou a casa e conquistou mais alguns títulos pelo Boca Juniors, recuperando a sede competitiva depois de assegurar a segurança financeira de algumas gerações de Tévez, se não gastarem tudo em doces.
À hora em que escrevo isto, alguém na Arábia Saudita deve estar a preparar mais uma série de propostas pornográficas para seduzir atletas que atuam na Europa. A promessa não é muito diferente. Muito dinheiro, muito talento importado, e gente suficiente nos estádios para tornar a coisa uma réplica mais ou menos credível da realidade. Se tudo correr como se pretende, e nada até agora parece indicar o contrário, a liga saudita continuará a recrutar treinadores e jogadores a tempo de criar uma liga com mais talentos por metro quadrado de relvado do que, pasmem-se, a liga espanhola.
Num futebol em que o dinheiro cada vez mais dita as relações de poder e o resultado final de cada jogo, um país com mais dinheiro do que os outros para gastar naquilo de que os outros mais gostam decidiu usar uma pequeníssima percentagem dessa riqueza para anunciar ao mundo que está a diversificar o seu portfólio e assim promover-se enquanto mais do que um produtor de petróleo. Perante a impossibilidade de conquistar desportivamente o capital de que necessitam para se tornarem uma potência reconhecida globalmente, e impedidos de importarem tudo o resto que torna o futebol aquilo que é, optaram por despejar dinheiro em cima dos futebolistas europeus e fizeram deles as conquistas mais desejadas da nova temporada.
Não é o primeiro desporto em que a Arábia Saudita investe, e seguramente não será o último. Conduziram com sucesso uma revolução muito maior no golfe, e fizeram-no exatamente com a mesma estratégia, aumentando o prize-money até fazer tremer boa parte dos atletas, neste caso os suficientes para fazerem tremer os alicerces do desporto. Em breve farão o mesmo com o ténis, e assim sucessivamente, até acertarem ou falharem vezes suficientes.
Tenho dificuldade em ver vilões neste processo. Há, acima de tudo, gente com muito dinheiro e um entendimento muito vago das ramificações morais dessa riqueza, e depois há gente esperta a tentar ganhar o seu num contexto que é muito provavelmente irrepetível, pelo menos no tempo de carreira que sobra a muitos dos melhores futebolistas da atualidade. A curta duração dessa carreira, e a minha própria relação com o trabalho, impedem-me de apontar o dedo a quem aceita este dinheiro. Esse é um comportamento geralmente observado em quem não recebeu uma proposta igual. É uma espécie de comfort food moral: um caldo saboroso de superioridade aquece-nos o coração enquanto julgamos os outros por colocarem quantidades obscenas de dinheiro em primeiro lugar, como se o mesmo fenómeno não se passasse há décadas na Europa, cavando fossos de disparidade bem maiores do que os provocados agora por uma liga de brincadeira na Arábia Saudita, que mais não quer do que montar um circo à porta de sua casa, pelo menos até se cansar.
Há uma lógica que parece presidir a esta estratégia, como notou o jornalista Rory Smith há poucas semanas no New York Times: no essencial, a ideia de que o sucesso do futebol enquanto conteúdo de entretenimento residirá cada vez mais nos atletas e na sua capacidade de atrair multidões, e menos nos clubes que os formaram ou lhes deram um contrato, ou ainda menos nos adeptos que enchem os estádios. O que essa premissa ignora é a razão pela qual não se transplantam árvores de fruto para gravilha, por muita água que tenhamos para a regar. As identidades dos jogadores foram em grande medida formadas pelos clubes por onde estes atletas passaram, pelos adeptos que os apadrinharam e lhes deram alimento para se afirmarem. Nada disto está ao alcance do futebol enquanto construção meramente financeira. Há um motivo pelo qual tantos adeptos em todo o mundo falam da maioria dos jogadores como portadores temporários dos valores que o clube representa. Alguns conseguem fazer isso tão bem que se tornam parte da história do clube, mas a máxima permanece intacta: os jogadores passam, os clubes permanecem. É por isso que a experiência saudita se prepara para uma fanfarra imensa, ignorando o rude despertar que a espera, ou talvez apenas indiferente face à inevitabilidade.
Bem vistas as coisas, a pessoa mais ajuizada em toda esta história é Carlos Tévez. O novo dinheiro saudita chegará para pagar umas extraordinárias férias e a segurança financeira a alguns dos melhores futebolistas e à sua descendência, mas tanto os atletas como os adeptos, até mesmo os sauditas, sabem que ainda não há bolsos suficientemente fundos para transplantar o futebol. Por isso, boas férias a todos os intervenientes. Cá vos esperamos no vosso regresso.