O futebol, esse mero detalhe

OPINIÃO06.12.202205:30

Há um certo clima de paz podre nesta Seleção Nacional e o capitão tem contribuído de forma decisiva para isso

A vida e o azedume em relação a este Mundial têm feito o que podem para me impedir de acompanhar a competição, mas é muito difícil ignorar uma coisa que está em toda a parte, dos cromos panini que os meus filhos colecionam aos jornais pousados em mesas de café, passando por notificações de aplicações, conversas entre amigos, e, claro, as intermináveis emissões televisivas dedicadas à antevisão, ao relato e ao rescaldo, seguido obviamente de nova antevisão. Sempre foi assim e nunca questionei a lógica desta sucessão de acontecimentos. Este ano uma parte de mim chegou a pensar que ia mesmo boicotar o Mundial, mas bastaram dois toques na bola de um catari com jeito para a carpintaria e já eu sentia um dever de saber tudo o que se passava. Atenção, não estou sequer a incluir as emissões da televisão portuguesa dedicadas à interpretação labial dos nossos jogadores. Essa parte é um extra desta competição com que não contava, ou talvez já o esperasse, eu e muitos. Seja como for, se juntasse esse importante desígnio do país, diria que a única forma de acompanhar tudo seria mesmo marcar férias e dedicar-me de corpo e alma a esta razão de ser.
Os factos que resultaram num exercício de interpretação labial são já conhecidos. Depois de tudo ter sido feito para convencer 11 milhões de pategos - nós - que nada tinha acontecido e que tudo não passara de um mal entendido, eis que é o próprio selecionador nacional a explicar que lhe podem fazer tudo menos tratá-lo como patego. E pronto, o capitão da Seleção voltou assim a protagonizar mais um episódio desnecessário em que é tudo sobre ele.
Há uma teoria que se tornou popular nos últimos anos: passa por defender a maior estrela da equipa portuguesa explicando que este fez o suficiente ao longo das últimas duas décadas para hoje ter o direito a fazer o que bem entender. Donald Trump disse uma vez, no início da sua era dourada em 2016, que podia disparar sobre alguém na 5.ª Avenida em Nova Iorque e que não perderia votantes. Cristiano Ronaldo parece por vezes pensar um pouco desta forma, ele e muita gente que continua a apoiá-lo erro após erro, porque errar é humano e todos erramos e só quem não erra é que não sabe, incluindo outras máximas de vida que de pouco nos servem quando Cristiano Ronaldo faz tudo menos aquilo que nos habituámos a esperar dele: golos.
Já sei como são estas coisas. Criticar certos clubes ou jogadores resulta geralmente em perseguição nas redes sociais ou por outra via, ainda que desta vez tenha uma esperança remota de que o tema se torne evidente. O tema é este: há um certo clima de paz podre nesta Seleção Nacional e o capitão tem contribuído de forma decisiva para isso. Apetece perguntar até quando deverá o país continuar a pagar a sua dívida de gratidão a um jogador que teima em transformar o maior evento desportivo do mundo numa gigantesca telenovela sobre ele. Imagine-se o seguinte cenário: qualquer outro jogador deste grupo decidia dar uma entrevista na véspera do arranque da preparação para o Mundial e, durante um par de horas, enquanto os seus colegas viajavam para se juntarem à comitiva, utilizava duas horas do seu tempo para mais uma vez ofuscar toda a gente à sua volta e atribuir culpas a todos excepto a si próprio. Não me admiraria que esse mesmo atleta, fosse quem fosse, acabasse excluído do grupo ou, no mínimo, fatidicamente relegado para o banco.
Felizmente o Mundial não é só isto. Brasil, Argentina, França e Inglaterra impressionaram nestas primeiras semanas de Mundial. O que têm em comum estas equipas? Cada uma delas joga um futebol que encontra conforto na intersecção entre as ideias de um treinador ambicioso e os talentos particulares de cada um dos futebolistas convocados, tão ou mais ambiciosos do que o seu treinador. Eu sei, é estranho para um adepto da Seleção. Não estamos habituados a ver isto, nem mesmo com a mais talentosa geração da história da modalidade em Portugal. Mas adiante. Ver cada uma destas equipas, cada qual com sua personalidade, suas virtudes e defeitos, é a oportunidade de voltar a ver futebol do mais elevado calibre, quase sempre à procura da baliza. Sinceramente é o que me vale enquanto o Benfica não volta a entrar em campo.
Se por um lado a ânsia de ver bom futebol me vai reconciliando a espaços com o Mundial, no outro extremo está a equipa portuguesa. Falta-me entusiasmo e interesse por esta Seleção, que pouco tem feito dentro de campo para reconquistar adeptos como eu e vai somando a isso uma prestação fora do relvado que já só encontra defensores acérrimos nos adeptos quadrienais ou em ideólogos praticantes do apoio à Seleção como espécie de obrigação moral. Muita gente parece ter interiorizado a tal história de pouco importar se jogamos bem ou mal ao ponto de se tornar uma doença. Seja a consequência tática de um treinador a quem faltam ideias que valorizem os melhores jogadores do mundo, seja o corolário natural das sucessivas narrativas extra-relvado que vão assolando a equipa nacional, a verdade é que hoje o futebol vai parecendo um mero detalhe quando devia ser o mais importante, quando mais nada deveria importar. Até quando vai o talento destes jogadores levar a melhor sobre os adversários auto-impostos? Não estou otimista.