O amor e uma varanda

O amor e uma varanda

OPINIÃO11.07.202309:53

O sucesso desportivo - sempre fundamental - e a experiência adquirida na liderança do clube têm tornado Rui Costa um líder à medida do clube

S ER do Benfica é uma condição de todas as horas, mas há momentos no benfiquismo em que se sente mais orgulho. Foi assim há poucos dias, por volta das 19:04, quando Di María se apresentou numa varanda do Estádio da Luz. Numa altura em que já nos habituámos ao aparato cénico e tecnológico do estádio, a simplicidade daquele momento foi especialmente eficaz e carregada de significado. Quis o destino e, presumo, a inteligência de quem comanda a comunicação do clube que, dois anos depois de ter aparecido no relvado da Luz, o palco maior da sua vida, para comunicar que ia assumir a liderança do clube pelo menos até às eleições seguintes, Rui Costa voltasse a aparecer, desta vez numa varanda com vista para milhares de benfiquistas. 

Rui Costa chegou ao lado de Ángel Di María mas, desta vez, com especial simbolismo, imediatamente recuou para deixar que fosse o argentino a protagonizar aquele momento. Penso que todos percebem se disser que era uma ocasião muito tentadora. O presidente do clube, ao lado do reforço mais sonante dos últimos anos, tinha ali uma oportunidade para fazer daquele também o seu momento. É interessante que não o tenha feito, e parece-me que diz algo positivo sobre a essência da pessoa em questão. 

Eu já me iludi e desiludi demasiadas vezes para acreditar em salvadores, no futebol e no que quer que seja. Acho sempre que me vão falhar e tendo a contar com isso. Neste caso, só posso falar das circunstâncias que conheço hoje. E o que vejo é isto: passou algum tempo, tempo suficiente, e parece-me que o sucesso desportivo - sempre fundamental - e a experiência adquirida na liderança do clube têm tornado Rui Costa um líder à medida do clube, com a ambição e a paixão dos benfiquistas mais apaixonados, mas também com a memória destes, alguém que compreende onde se deve distinguir face ao passado.
 

«De repente, uma varanda e o amor daquele ajuntamento no meio da rua foram tudo o que o Benfica precisava«, escreve Vasco Mendonça


Rui Costa é também alguém que tem repetidamente tomado decisões acertadas e recusado transformar esse desempenho num culto da sua personalidade - o que demonstra personalidade. Ninguém lhe reconhecerá o estilo bélico e histriónico que tem feito escola no futebol português, e parece-me bem que assim seja. Comecei por estranhar e até criticar a postura excessivamente discreta, que a espaços me pareceu pouco corajosa. Desde então muita coisa aconteceu, e muito foi conquistado. A melhor parte? Para mim, que ironicamente trabalho em comunicação, é a certeza de saber que nada nestas conquistas - o título, a ligação dos adeptos a este treinador e a esta equipa, a crença em mais -, nada disto se deveu a comunicados. A vida vai-me ensinando, na ilusão e na desilusão, que o melhor é mesmo deixar que o trabalho fale por nós. O trabalho de Rui Costa tem falado por ele e diz muito do que os adeptos precisavam de ouvir.

Há uma combinação de fatores que torna aquele momento na varanda especial. De todos, o que mais me chamou a atenção foi a emoção dos adeptos perante o regresso de um jogador a casa, um regresso que até há pouco tempo parecia impensável, mas que agora parece até um desfecho natural, dado o período que o clube atravessa. Essa sensação de confiança, que no caso dos benfiquistas se transformou em convicção, tornou-se contagiante ao longo do último ano. Contagiou os adeptos do Benfica, os adeptos de futebol, e também muitos jogadores, que aos poucos percebem que algo se está a passar aqui, que algo mudou. De repente, querem fazer parte disto. Os que ainda não conhecem o clube sentem-se seduzidos. Os que já testemunharam a grandeza do Benfica sentem que este é hoje ainda maior, porque mais forte. Tudo isto conta. É que, por muita emoção que nos guie, para um futebolista esse sentimento raramente sobrevive ao teste da razão quando o assunto é saber qual o próximo contrato a assinar. É bom saber que o Benfica consegue hoje simultaneamente apaixonar jogadores como Di María e fazer com que este desfecho seja uma decisão provida de razão. 

Nada disso significa que eu seja imune ao romantismo do regresso de Di María. Isso é, aliás, o que motiva este texto. Quando Ángel vem à varanda para dizer, com um jeito algo envergonhado, que teve muitas propostas de outros clubes mas que decidiu voltar ao clube do coração, e o repete com emoção enquanto bate com a mão no emblema, percebe-se que está a acontecer ali alguma coisa genuína. Não acredito em salvadores, mas é bom ainda poder acreditar na paixão de um jogador pelo clube que o faz regressar mais de 10 anos depois. Não tenhamos ilusões. A paixão de Di María talvez não fosse a mesma se o regime fiscal fosse outro, mas, aqui chegados, é preciso saber manobrar as questões burocráticas para chegar aos momentos que interessam. E isso é mais fácil quando há verdade nos protagonistas, como me parece haver em Di María quando fala do regresso a casa. Essa verdade foi uma qualidade transbordante ao longo daqueles minutos em que se cantou e aplaudiu. 

Não me sinto especialmente romântico em relação ao futebol. Olho com um desinteresse e um ceticismo crescentes para muitas dimensões do jogo, que parecem viciadas ou destinadas a afastar adeptos. De resto, Di María pode lesionar-se amanhã, pode esta época não correr como a anterior, e pode muita coisa correr mal. Pode até a apresentação do jogador envelhecer da pior forma (não creio). Uma coisa é certa: aconteça o que acontecer, nada disso me impediu de apreciar a dimensão estética desta coincidência, cada vez mais rara, em que uma vontade (minha) de reencontrar a qualidade essencial das coisas, no fundo a razão pela qual um tipo se apaixona por algo, encontra correspondência na realidade. Um evento comunicado na véspera, marcado essencialmente para a rua, recebeu milhares de benfiquistas de todas as idades para uma demonstração de afeto e paixão clubística que só precisou de cachecóis, gargantas e pulmões. Momentos como este, que por vezes já só parecem reservados para as memórias dos mais velhos, são a universidade da vida para um adepto. Não se ganhou um jogo nem a taça, mas toda a gente saiu dali a gostar ainda mais do Benfica e a conhecê-lo um pouco melhor. O Benfica é muito mais isto do que qualquer outro tema da agenda em que venham a tropeçar até ao próximo jogo na Luz. Às vezes é fácil perder o romantismo e esquecer isso, por isso é fundamental que alguns dias nos devolvam esse sentimento.

Cada um fará a sua interpretação daqueles minutos, e talvez eu veja ali mais do que efetivamente aconteceu, mas não consigo imaginar um benfiquista que, tendo lá estado ou assistido em direto, tenha ficado desapontado. De repente, uma varanda e o amor daquele ajuntamento no meio da rua foram tudo o que o Benfica precisava. Ainda não sei se chega para ganhar a todos, mas é nestes momentos que apetece dizer: sou do Benfica e isso me envaidece.