Niilismo no Catar
Venham os golos e que se lixe tudo o resto. Não procuremos mais significado que não seja a visceralidade de uma bola a entrar na baliza
C OMEÇO com uma declaração de interesses. A minha vontade de assistir a um Mundial de futebol em novembro já não era muita de qualquer das formas, mas a coisa piorou muito nos últimos meses. É que a minha cabeça está preocupada com tudo menos com a seleção de Fernando Santos. Aliás, não deve haver pior/melhor clube no mundo para se apoiar neste momento do que o meu. A cada vitória do Benfica dou por mim a rogar pragas à complexa teia de compadres que garantiu a realização desta prova no Catar, logo este ano.
O tema incomoda-me por dois ou três motivos. Em primeiro lugar, privar os benfiquistas de verem os jogos da equipa principal durante um mês, reservando o pouquíssimo tempo disponível no calendário para uns jogos da Taça da Liga, é um tanto ou quanto sádico. Depois, há o risco das eventuais lesões que algum dos atletas do Benfica possa vir a sofrer, que me levam a não querer arriscar por causa de uma estapafúrdia prova de seleções às portas do Natal. Por último, há o pressentimento - impossível de eliminar por completo - de que este interregno, uma espécie de experiência de laboratório em que o futebol mundial decidiu participar alegremente, pode ser menos favorável para quem está a jogar no máximo das suas capacidades, com um grupo de trabalho que só devia sair do Seixal para estar com a família. Espero sinceramente estar enganado, mas o ideal mesmo era não ter de viver com esta dúvida durante os próximos dois meses.
Como se não bastasse ser benfiquista, tenho também o azar de possuir um mínimo de bom senso, o que me obriga a questionar tudo o que está na origem desta prova: a cultura do país que recebe uma competição representativa do mundo inteiro e discrimina uma parte significativa dos adeptos estrangeiros que pretendem assistir aos jogos, a longa jornada de violações de direitos humanos e dos trabalhadores que permitiu erguer os estádios onde a prova será realizada e que matou milhares de pessoas no processo (segundo o Guardian, uma média de 12 trabalhadores morreram semanalmente desde 2012), ou as doses cavalares de hipocrisia que têm caracterizado a postura de muitas entidades oficiais, comprometidas que estão com o dinheiro e os interesses em jogo no contexto de toda esta brincadeira.
Fique descansado, caro leitor. Esta semana não tenciono moralizar. Ao invés de vir aqui proclamar que o futebol tem de ser muito mais do que isto, em vez de exigir que nos olhemos ao espelho e vejamos a podridão moral desta competição, e rejeitando veementemente qualquer réstia de inocência que me leve a apelar à consciência coletiva para que juntos gizemos um plano de ação que volte a fazer do futebol a festa das nações que pode ser, apetece-me dizer que o futebol é exatamente, e cada vez mais, isto: um jogo de qualidade variável, ditado moralmente pelo dinheiro, em que o capital financeiro falará quase sempre mais alto, mesmo dentro de campo, ou especialmente dentro de campo. O niilismo apoderou-se de mim. Não me tentem enfiar mais nenhum anúncio sobre valores, superação e trabalho de equipa pela goela abaixo. Guardem-nos para o próximo Mundial. Talvez a minha ingenuidade volte até lá. Por agora, acabou-se. Vou ver o Mundial, claro que vou, como qualquer pessoa que gosta muito de futebol, mas será um pouco como tomar metadona para substituir outra droga.
Sobre esta revolta à porta do Mundial, apetece-me também recordar com algum carinho aquela semana em que os adeptos e os media de todo o mundo crucificaram meia dúzia de clubes que decidiram anunciar uma superliga europeia porque estavam a colocar em risco a natureza e a identidade do jogo, porque colocaram os euros à frente de tudo o resto. Subitamente o futebol estaria a ser assassinado, depois de muitas décadas a ser mimado pela UEFA e pela FIFA. Lembro-me da indignação porque já na altura me pareceu um tanto ou quanto questionável e em véspera do Mundial parece-me quase caricata, como se o jogo de que tanto gostamos não fosse há muito estruturalmente ditado pelo dinheiro, como se as desigualdades alimentadas ao longo de décadas e ditadas essencialmente por imperativos financeiros não tivessem determinado, quase com total certeza, os desfechos da maioria dos eventos desportivos a que assistimos. Bem feitas as contas, a única coisa que nos mantém inapelavelmente ligados a isto é a esperança de vermos o nosso clube imperar neste lodaçal, por talento e para que se faça justiça no mundo, sentirá o adepto de cada equipa. É aqui que entra o espírito patriótico, ou pelo menos era. Estou prestes a assistir ao primeiro Mundial de futebol da minha vida em que a competição faz pouco sentido e parece a menos importante de todas as coisas ali, e, pior ainda, o primeiro Mundial de futebol em que não consigo sentir a Seleção Nacional como sendo exatamente a minha seleção, aquela em que me revejo.
Quem sabe. Talvez joguemos bem, talvez até cheguemos longe e a coisa se componha, incluindo o meu estado de espírito. Isso ou o niilismo que me assola por estes dias também pode ser um combustível para algo melhor. O niilismo é por vezes confundido com uma visão pessimista do mundo, mas pode ser tremendamente libertador. Se não acreditarmos em nada, também não nos podemos desiludir. Passamos a construir a nossa própria realidade, desprendida de valores ou questiúnculas morais. Talvez o ideal seja por isso dispensar qualquer espécie de preceito acerca da modalidade e assistir às próximas semanas de futebol como a celebração amoral da barbárie que esteve na sua origem. Venham os golos e que se lixe tudo o resto. Não procuremos mais significado que não seja a visceralidade de uma bola a entrar na baliza. O resto logo se vê. Talvez o futebol que há de vir - depois de termos descido tão baixo - nos traga uma boa nova. Mas não creio.