Jogo vazio
Não deixa de ser irónico que, para sobreviver, para se manter à tona, a bola tenha que começar a rolar sem a sua essência maior. Sem a sua força motora, a sua grande inspiração: o adepto. Na ótica de quem está deste lado, futebol sem adeptos é como carnaval sem samba. É presente sem embrulho. É concerto sem maestro, corpo sem alma. Não faz sentido.
Sei disso na primeira pessoa. Em tempos, arbitrei uma partida com essas características, em Zagreb: bancadas totalmente despidas, ausência de miúdos e graúdos, de novos e velhos. Nada. Ninguém. Os motivos foram diferentes, mas o desenho exterior foi exatamente igual ao que veremos em breve. Por muito que antecipemos, a verdade é que nunca estamos preparados para atuar em palcos assim. Somos dominados por sensações novas, que nunca vivemos nem experienciámos. É tudo muito estranho.
Percebemos isso antes de entrar no estádio. As estradas não estão cortadas, não há trânsito à porta nem estão polícias por perto. Não se veem vendedores de rua, gente apressada ou bandeiras e cachecóis no ar. Falta aquele frenesim especial, aquele salero motivacional. É tudo muito frio e distante. É tudo muito impessoal.
Lá dentro, na zona de acesso aos balneários, jogadores e técnicos esforçam-se por manter a energia em alta. Sorriem, conversam, ouvem a música que os phones libertam, como se tudo não passasse de mais um dia no escritório, mas é notório que lhes falta qualquer coisa. O cenário pode até estar bem montado, mas é demasiado esforçado e artificial. Demasiado orquestrado.
Fica logo claro, para todos, o que antes já era previsível para muitos: os adeptos são o sal, a pimenta e o tempero do jogo. São o princípio e o fim. São deles os golos marcados e as emoções vividas por cada bola que bate na trave, por cada remate que passa ao lado. Sem adeptos por perto, a apoiar, barafustar e criticar, o futebol é metade. Fica insonso. Deixa de ser um espetáculo de qualidade e passa a ser uma espécie de filme em diferido, com delays e câmaras a mais. É a inversão de tudo.
Quando entramos para o aquecimento, ouve-se meia dúzia de palminhas e uns quantos assobios. Tudo muito tímido, envergonhado, esbatido por um vazio gigantesco. Os atletas, profissionais de primeira linha, tentam abstrair-se, fazem os seus habituais exercícios. A cada gesto sistematizado, procuram ignorar a força daquele silêncio. Não é fácil. Há anos que a sua mente está formatada para absorver o som que vem das bancadas, não o silêncio ensurdecedor da sua ausência.
Para nós, árbitros, a experiência é também frustrante. Falta o insulto exterior para espicaçar, para transformar a ansiedade miudinha em energia positiva. Falta adrenalina, esse estímulo maior, que apela à concentração e obriga à superação. Sem essa pressão, é difícil colocar o foco no ponto certo. E quando não focamos bem, erramos mais. Para a arbitragem, esse é o maior perigo que aí vem.
Depois do jogo começar as coisas não melhoram. A vontade em nos dedicarmos apenas ao que vemos e intuímos cai por terra de cada vez que o eco devolve o som do apito. É qualquer coisa de desesperante, esse retorno sonoro de cada decisão tomada. Depois, é tudo demasiado rude. Ouve-se tudo ao pormenor. Sem filtros. O defesa que refila com o colega, o avançado que protesta com o adversário, a pancada que o médio dá no opositor. Tudo nu e cru. Tudo demasiado seco, como se fosse um amigável jogado a sério.
Dos bancos voam indicações dos técnicos, ecoadas nas bancadas como pedras num charco. Aos treinadores também falta tudo. Falta a alegria do aplauso e o empurrão do assobio. O futebol de verdade - aquele que o adepto, por acaso, também paga e paga bem - não nasceu para se arrastar assim, ao sabor das forças que hoje o sustentam e dominam. Tornou-se demasiado dependente de uma só variável porque não soube encontrar outras sustentáveis para sobreviver.
Um dia, alguém vai ter que nos explicar como chegámos a este ponto, de termos que continuar a jogar sem ninguém para aplaudir.