Há males que vêm por bem
Com o dinheiro da cláusula de Enzo, o Benfica pode recuperar Ricardo Horta e descobrir mais dois ou três jogadores com a humildade e o valor do bracarense
NO verão de 2020, quando Luís Filipe Vieira teve a infeliz ideia de resgatar Jorge Jesus ao Flamengo, a proclamação feita pelo treinador de pôr o Benfica a jogar o triplo não passou de uma promessa de vida curta. Durou cinco jornadas, com cinco vitórias e liderança na classificação, 15 pontos, contra 13 do Sporting e 10 do FC Porto. Na sexta jornada, porém, ficou sem ideias e perdeu no Bessa, com o Boavista (0-3). Na ronda seguinte, no Estádio da Luz, foi derrotado (2-3) pelo SC Braga e desde logo ficou traçado o destino da águia. No final, o Sporting foi campeão (85 pontos), o FC Porto segundo (80) e o Benfica terceiro (76).
Na temporada passada, ainda sob a suprema orientação técnica de Jesus, aconteceu mais do mesmo. O Benfica repetiu o 3.º lugar, a dezassete (!) pontos do campeão FC Porto e a onze do Sporting, que foi segundo classificado. Além de se ter repetido a derrota da ordem frente ao SC Braga, agora no Minho, por idêntico desfecho (2-3).
Como não há duas sem três, reza o ditado popular, na última sexta-feira respeitou-se a tradição, mas desta vez a preocupação maior nem teve a ver com o peso do resultado, mas sim com a inação de um esboço de equipa que começou e acabou mal, sofrendo três golos que, sem retirar mérito a quem os marcou, são o reflexo de inaceitável incompetência de quem os sofreu e jamais revelou um pingo de vontade para, se não inverter a tendência do jogo, no mínimo, fazer um esforço para o equilibrar. É verdade que a segunda parte não foi igual à primeira, mas, nessa altura, já o SC Braga tinha a vitória construída e o desafio absolutamente controlado.
NÃO há equipas invencíveis e a primeira derrota em jogos oficiais era esperada pelos adeptos benfiquistas, mas não desta forma a raiar a humilhação, em que os dois golos de desvantagem assinalados ao intervalo expressavam uma diferença simpática para quem se limitou a ver o oponente jogar. Cansaço de viagens longas em primeira classe ou em voos privados? Culpa do treinador por dar férias generosas aos não convocados para as seleções? Francamente, os titulares utilizados devem ter calçado botas de chumbo e os suplentes nada acrescentaram, acentuando-se a urgência de fortalecer um plantel qualitativamente deficitário, fruto de políticas de aquisições seguidas nos últimos anos que não deram atenção aos jovens do Seixal e preferiram comprar, fora, avulso, geralmente caro e sem critério.
Motivos não faltarão para esmiuçar este medíocre comportamento da equipa treinada por Roger Schmidt e acautelar eventuais correntes de ar nos jogos que se avizinham, ambos em casa, com o Portimonense e o Sporting. Um dia mau todos temos, nas nossas vidas ou nas nossas profissões, mas não é isso que se tem verificado na história recente do Benfica em que, sem uma explicação razoável, os jogadores se acomodam e banalizam a exigência de vitória. Basta recordar o filme de última época, por exemplo, e da anterior…
No atual plantel ainda sobrevive gente que não conhece a história do Benfica ou, se conhece, não lhe atribui grande significado, o que é pior. Não foi por perder em Braga que vai criticar-se o trabalho que está a ser feito, e bem feito, mas foi um sinal, na sequência de outros com graves sequelas desportivas, que os adeptos julgavam definitivamente eliminados.
Não foi a derrota que deixou descoroçoado o universo da águia, mas sim a facilidade com que foi consentida por um Benfica péssimo a defender (basta rever os lances dos golos) e fraquinho a atacar. Não foi uma peça que falhou, foi o coletivo que se evaporou. E isso deve ter uma causa e merecer uma explicação, mas quem está no convento é que sabe o que lá vai dentro.
Oque este jogo de Braga inequivocamente destapou foi o lapso da não contratação de Ricardo Horta por desencontro de verbas, o qual sempre me pareceu pouco convincente para impedir um acordo entre os dois clubes. Numa altura em que a Administração benfiquista está no mercado à procura de pessoal novo para dar mais qualidade ao plantel talvez não fosse má ideia repensar este assunto, bater a cláusula e corrigir o erro do verão de 2022, porque, à luz das evidências, de um erro se tratou.
Para complicar a processo, Enzo Fernández mandou os interesses do clube empregador às malvas e foi à vidinha dele. Não será fácil fazer ver determinadas coisas a um jovem de 21 anos, campeão do mundo, endeusado pelo povo argentino e que se julga credor de estatuto especial. Além de ter pessoas em redor com promessas de riquezas que o Benfica não lhe pode dar. Não vale a pena perder tempo com conversas inúteis. Se há males que vêm por bem é aproveitar a onda enquanto o vento sopra de feição e com o dinheiro da cláusula de Enzo recuperar Ricardo Horta e descobrir no mercado mais dois ou três jogadores com a humildade, a seriedade e o valor do bracarense. Não é difícil, mas é preciso querer.