Ganhar um penálti, perder o respeito

OPINIÃO12.04.202206:30

Mehdi Taremi, não sendo o primeiro a celebrizar esta arte, tem feito valer os seus dotes de mergulhador um pouco por todo o país

UM texto de Jorge Valdano publicado em 2006, no 20.º aniversário da Mão de Deus, explica que o golo de Maradona marcado com a mão à seleção de Inglaterra talvez pudesse então, duas décadas depois, ser analisado de forma mais escrupulosa, mas que em junho de 1986 tudo aquilo fora alegria, alívio e um sentido de justiça restaurada, quatro anos depois da retirada das tropas argentinas que combatiam frente ao Reino Unido nas Malvinas. É difícil discordar de alguém como Jorge Valdano quando o tema é futebol, mas mais ainda quando este se refere a um momento capital da vida de Maradona e da história da Argentina. Para Valdano, como para todos os argentinos dentro e fora do relvado, o momento foi de justiça poética, foi uma intervenção divina, foi tudo o que tinha de ser.

Valdano explica melhor do que ninguém: os argentinos racionalizaram a mãe de todas as batotas como exuberância, dimensão profunda da personalidade coletiva de um país, que foi transposta para o relvado naquele instante quase tão bem quanto no golo do século, o slalom de Maradona em que Victor Hugo Morales, célebre locutor uruguaio, eternizou D10S como o barrilete cósmico. A história desse jogo e do futebol ensinou-nos a respeitar e até adorar aquela manha, porque até esse direito Maradona conquistou. A manha fora protagonizada por um dos melhores futebolistas de todos os tempos, cujo golo marcado com a mão simplesmente fez esquecer por breves instantes o talento de Diego com os pés. Como dirá hoje um árbitro incumbido de analisar os casos da jornada, aceita-se a leitura do lance.
 

No terreno do V. Guimarães, Taremi protagonizou dois penáltis e converteu um deles, oferecendo a vitória por 1-0 ao FC Porto 


Desde então, muitos têm sido os futebolistas que trouxeram esta arte do engano para o novo século e muitos são os que continuam obstinadamente a dar novos mundos ao mundo da aldrabice. Há um pequeno problema: a maioria destes artistas parecem ignorar que, para se conquistar o direito à ideia romântica da manha, é preciso fazer-se um caminho até lá. Convém ter mais alguma história para contar, de preferência com a bola nos pés. Quando assim não é, corremos o risco de chegar a 2022 e acabar cada jogo a tornar a modalidade ligeiramente pior do que quando começámos. Em lugar de barriletes cósmicos celebrados uma vez por século, temos direito a barretes semanais.

O que nos leva a Mehdi Taremi, avançado do Futebol Clube do Porto que, não sendo o primeiro a celebrizar esta arte, tem feito valer os seus dotes de mergulhador um pouco por todo o país. Se eu pedir ao leitor para se lembrar do último golo de Taremi em jogo corrido, o leitor terá alguma dificuldade. Mas acredito que se lembra dos últimos 3 ou 4 mergulhos para o relvado. É fácil perceber porquê. Aconteceram todos no espaço de poucas semanas e a recompensa foi quase sempre um penálti a favor do FCP. É possível que o leitor portista esteja por esta altura a insultar-me enquanto vocifera pelos penáltis simulados por, sei lá, um Jonas. Ainda bem que fala nisso. As estatísticas que o site Goalpoint regista desde 2014 não me deixam mentir: desde que chegou ao Rio Ave, Taremi sofreu 18 penáltis em 6468 minutos. Jonas sofreu 6 penáltis em 9778 minutos, ou seja, em todo tempo que esteve no Benfica. Não é difícil por isso concluir que o leitor se recordará mais facilmente dos golos de Jonas em jogo corrido, mesmo que o brasileiro já se tenha retirado dos relvados. Se Jonas tinha manha e a usava? Seguramente, e usou bem. Se era essa a história que o seu futebol contava de cada vez que entrava no relvado? É evidente que não, tratando-se de um dos melhores avançados que pisou os relvados portugueses nos últimos 15 anos.

A história de Taremi não é protagonizada apenas por ele. Participam nesse espetáculo todos os que celebram a manha como ideia de jogo ou recurso primordial do atleta. Não obstante o talento de Taremi, esta é uma reputação que se cola a um jogador se, a cada incursão em velocidade, logo procura o contacto para imediatamente se atirar para a relva. Não quero que sintam que digo isto em desprimor para com Taremi. Fazer isto todas as semanas é muito mais difícil do que parece. Primeiro que tudo há o risco de se contrair uma lesão quando fingimos que alguém nos lesionou; há também o ocasional (mas raro) amarelo quando a simulação não é bem conseguida; finalmente, sabemos bem da inconsistência dos relvados da nossa liga. Cair em Portimão não é a mesma coisa que cair em Moreira de Cónegos. Há relvas muito ásperas que dificultam o trabalho de Taremi em prol da sua equipa. É um tema ao qual os responsáveis deviam dar mais atenção.
Não estou a exagerar quando vos digo que estamos perante um visionário. Podia jurar que já vi Taremi a fixar olhares com um árbitro mesmo antes do contacto com o adversário, como que dizendo senhor árbitro, prepare o apito que vem aí mais um daqueles contactos com intensidade relativa que não dão para reverter no VAR. Já sabemos como acaba esta história.

Existe uma tendência no adepto menos urbano para celebrar jogadores que parecem ver tudo antes dos outros como Messi, Xavi, Redondo, Zidane, Iniesta, Modric, ou Busquets. Por incrível que pareça, esse mesmo adepto é incapaz de celebrar este dom que permite a certos predestinados ver um penálti que mais ninguém viu e coreografá-lo semanalmente na perfeição para que, em face do regulamento e da cegueira interpretativa do árbitro de campo ou do VAR, não tenhamos outra escolha senão acatar a decisão. Não deixa de ser curioso que as recomendações do Conselho de Arbitragem identifiquem como «indicadores que podem contribuir para aumentar a eficácia da identificação dos comportamentos considerados como simulações» (…) o jogador em queda ou em desequilíbrio antes do contacto, o caráter previsível da queda, a encenação da queda, ou a rotação da cabeça do avançado à procura da decisão da equipa de arbitragem. No fundo, as recomendações do Conselho de Arbitragem dizem o que todos sabemos: tenham cuidado com este Taremi. É uma pena que ninguém queira ver. Pelos vistos não há tecnologia que nos salve.

Já vi de tudo nas últimas horas: houve quem dissesse que Bruno Varela foi pouco inteligente na abordagem, ele e os outros 16 guarda-redes; há quem se defenda dizendo que o árbitro não tem outra opção; houve também quem me explicasse que o Taremi é muito mais do que estes lances, como se eu não tivesse visto o talento do Taremi com os mesmos olhos com que o vejo atirar-se para o chão vezes sem conta. Há até quem, num momento de insanidade, me tente convencer elogiando a inteligência de um jogador que faz isto repetidamente, como se o futebol fosse esta triste encenação validada até à exaustão.

Termino com o exemplo de um desporto mais civilizado. Aconteceu há poucos dias. Carlos Alcaraz, um prodígio assombroso com apenas 18 anos, dono de um talento e de uma preparação física que não eram vistos nesta idade desde Rafael Nadal, jogava a meia-final do Masters 1000 de Miami frente ao polaco Hubert Hurkacz. Trocando por miúdos, era o encontro mais importante da carreira do miúdo, e o final do set aproximava-se. 30-0 para Alcaraz no seu jogo de serviço, 5-6 em jogos para Alcaraz. A bola parece bater duas vezes no campo de Hurkacz e o árbitro atribui o ponto a Alcaraz. A dúvida instala-se, mas, após alguns segundos de indecisão, é Alcaraz quem decide conceder o ponto ao seu adversário, corrigindo o erro do árbitro. Mereceu o aplauso imediato do público e mereceu ainda mais a vitória nesse encontro, que acabaria por levá-lo à primeira final e à primeira vitória num Masters 1000.  

Parece estranho começar com a batota épica de um dos maiores de sempre e terminar com a verdade desportiva de um jovem tenista espanhol, mas é precisamente aí que me encontro quando tento encontrar um sentido no caminho dos desportos que mais aprecio. À medida que atletas e modalidades evoluem, não basta confiar que a tecnologia se adaptará. É preciso mais e melhores comportamentos por parte de todos os intervenientes para oferecer dignidade ao espetáculo. Se não concordam, eu pergunto: conhecem alguém, um só adepto que seja, que se tenha apaixonado pelo futebol à conta de um penálti bem cavado? Carlos Alcaraz conquistou milhares de fãs ao preferir perder aquele ponto. Um futebolista que escolhe ludibriar o árbitro diz-nos algo muito diferente. Assume que está disposto a perder o respeito dos adeptos.