Futebol das famílias... só que não

OPINIÃO20.09.202206:30

Podemos fazer o habitual, com resultados inócuos, ou passar das palavras às ações

Q UANDO vistos de forma isolada, os casos do menino que viu o jogo sem camisola vestida e o da menina que, ao colo do pai, teve que fugir da bancada onde estava... chocam. Chocam qualquer pessoa de bem, que tenha o mínimo de sensibilidade e que perceba que o futebol não é suposto ser isto: um lugar onde o medo ganha ao respeito, onde insulto e coação derrotam alegria e liberdade de viver um momento que, para o adepto, deve ser de festa. Esta constatação, mais ética que pragmática, mais romântica que racional, não pode desviar-nos do tema maior, do problema de fundo: o de sabermos que a nuvem cinzenta que paira sobre as questões de segurança nos estádios não nasceu em Famalicão nem no Estoril. Não nasceu hoje nem ontem. 

Por muito que o dedo apontado aos menos fortes dê agora jeito (e nós sabemos que a narrativa serve a tantos), a verdade é que o futebol português já viveu momentos piores. É preciso que não tenhamos memória seletiva quando, do alto do nosso moralismo, nos apressamos a criticar o que de menos bom acontece na casa dos outros. É preciso que nos lembremos que, de very-lights a atropelos mortais, de invasões de academias a pancadaria nas bancadas, de apedrejamento de carros a bonecos pendurados em pontes, de atos racistas a agressões a árbitros, de visitas a centros de treino a perseguições em autoestradas... pouco falta para o baralho ter os naipes completos. 

Perante este contexto - não tenhamos dúvidas, muito escalado pela inacreditável impunidade com que se comunica futebol, lançando gasolina para tudo o que é eucalipto -, haverá sempre dois cenários: o habitual, que fazemos há décadas, com resultados práticos inócuos (ou seja, repudiar, apelar ao bom senso, exigir reflexão profunda, aumentar campanhas de sensibilização, tudo fundamental mas muito curto) ou a opção mais complexa, mais desafiante, mais cara e, de longe, mais corajosa: tentar, de uma vez por todas, agarrar o touro pelos cornos e dar o passo em frente, que é como quem diz, passar das palavras às ações.

Ora esta é a parte mais tramada. E é tramada porque não depende apenas de uma ou duas vontades, de um ou duas partes. Liga Portugal, sozinha, pouco conseguirá nesta matéria; Federação Portuguesa de Futebol também; Governo, APCVD, clubes, associações de árbitros, de jogadores, de treinadores e adeptos? Igual. 

A mudança de paradigma de algo tão difícil de concretizar na prática deve passar pelo esforço conjunto de todos: da legislação civil à regulação desportiva, do investimento financeiro adequado à capacidade da justiça desportiva responder com maior eficácia e celeridade. 

Verdade, verdade, é que o adepto que não respeita os outros não pode entrar num estádio, pavilhão ou em qualquer outro recinto desportivo. O arruaceiro que insulta, ameaça e agride quem pensa diferente tem que ser acionado criminalmente e impedido de assistir a eventos desportivos. Os clubes que, por ação ou omissão, incentivem claramente más condutas ou criem ambientes que fomentem essas práticas têm que ser exemplarmente sancionados. A imprensa desportiva deve assumir papel importante na construção de uma sociedade mais higiénica e menos tóxica. Todas as pessoas de bem, que suportam a indústria pagando bilhetes, camarotes, red passes, quotas e canais pay per views têm o direito de ver jogos onde quiserem e com os adereços que entenderem. Isso sem se preocuparem em ser incomodadas, molestadas, desrespeitadas e corridas dos seus próprios lugares.

A normalização da loucura e do crime não são solução. 

Por muito que vos pareça, esta não é uma visão idealista nem lírica. As coisas têm mesmo que ser assim, devem ser assim e são assim em muitos lugares civilizados.

Pobres das almas conformadas que, no alto da sua ironia, ainda chamam de romântico aquele que tem apenas a pretensão de exigir o normal.