Espírito natalício
A escola que a minha filha frequenta divide um dos seus polos com um lar de idosos. A ideia permite a sã convivência entre uns e outros. Um fosso geracional aproximado de forma tão subtil e inteligente. É bonito de ver.
De vez em quando a Beatriz chegava a casa com algumas histórias deliciosas. Confesso que nunca percebi bem se parte daquelas narrativas eram fruto da sua imaginação ou realidade, embora isso não fosse relevante. O mais importante é que, quando nos contava tudo aquilo, tinha um brilho diferente nos olhos e isso sim, valia ouro.
Uma vez disse-nos que tinham feito uma surpresa a uma «jovem» do lar que, nesse dia, completava 103 anos! Chegaram perto do muro e cantaram-lhe os parabéns. Não vi, mas tenho pena. Tenho a certeza que foi um momento especial, muito especial.
Antes disso já nos tinha dito algo capaz de deixar qualquer pessoa embevecida: pai e filha frequentavam o mesmo lar há algum tempo. Ele teria cento e poucos, ela estaria na casa dos oitentas. A parte mais curiosa é que ele continuava a tratá-la como uma criança, a sua menina. Era algo que deixava todos fascinados. Aquele retrato raro de manterem uma relação paterna perfeita.
Estes testemunhos emotivos, partilhados pela voz inocente da minha pequenina, têm outro sabor nesta altura do ano. São mais relevantes. Vêm à memória.
O Natal ajuda-nos a dar outro valor a estes episódios. Episódios que até acontecem com frequência, mas que parecem-nos transparentes na corrida vertiginosa que é o nosso dia a dia. Há, sim, qualquer coisa de muito especial nesta quadra. Há um apelo maior aos sentimentos, às emoções e à vontade de nos libertarmos das nossas amarras. O Natal devolve-nos essência, genuinidade e humanidade. Leva-nos a querer a companhia prolongada dos nossos sem pensarmos em mas ou ses. Sem pensarmos nas turbinas mal oleadas que nos movem o resto do ano. Natal é isto. Um parêntesis em bom e isso é bom.
Acho que continuamos a perder demasiado tempo a tentar resolver problemas, deixando pouco espaço para resolver, aceitar e seguir em frente. Andamos a mil, dormimos pouco e comemos mal. Chateamo-nos com pessoas que gostamos e com aquelas que mal conhecemos, sem que isso nos leve a algum lado. É como se estivéssemos a correr atrás de qualquer coisa que nunca conseguimos apanhar. E quando por acaso conseguimos, corremos logo atrás de outra e depois de outra e mais outra.
Fora do Natal, a vida é uma agitação na busca de algo que nunca chega, que nunca sacia. Vivemos ao contrário, de com objetivos trocados. Fazemos do meio o fim e morremos a pensar que o objetivo é esse.
A solução para desacelerar, para reposicionar prioridades, não é fácil mas lá está... o Natal é o período certo para parar e refletir.
Pagar contas, resolver dramas ou vencer é importante. Viver sem essa intensidade não é viver bem. O inconformismo, a ambição e a competitividade são armas poderosas para a nossa evolução, mas tudo isso deve ser enquadrado em metas maiores.
Viver de verdade é encontrar o equilíbrio perfeito entre o que somos e o que fazemos. É saborear o tempo sem pressa. É passar mais minutos com os que são parte de nós. Viver de verdade é respirar com outra leveza, usufruir das coisas que gostamos. É ser educado, gentil e tolerante. Viver de verdade é respeitar, ajudar e dar, sem esperar nada de volta.
O resto não é bem viver, é sobreviver. Não é suposto ser assim, pois não?
PS - Para a semana volto às expulsões e aos penáltis, mas hoje não me levem a mal... é Natal. Boas Festas.