Do exemplo
Um dos assuntos do momento tem a ver com a possibilidade de podermos vir a ter (ou não) público nos estádios, já a partir da próxima época. A vontade da estrutura e, estou certo, de todo o universo do futebol é unânime e faz sentido: os adeptos são a alma e essência do jogo. São a sua força motora, o seu impulso maior, a energia que faz brilhar toda a indústria. Como aqui referi há não muito tempo, sou um dos que assino por baixo nessa pretensão, desde que - importa sublinhar - ela seja compatível com todas as regras definidas pelas autoridades de saúde. Desde que, no fundo, ela não coloque em risco os sacrifícios que todos fizemos no sentido de preservar aquilo que de mais valioso existe na vida: o bem-estar físico, emocional e mental de cada um de nós.
É muito difícil não entrar, de novo, nas comparações habituais, que motivaram críticas compreensíveis: nesta retoma gradual, é verdade que já se viram milhares de pessoas a assistir, ao vivo, a touradas e a espetáculos de stand-up comedy (em recinto fechado). É verdade que já se vendem bilhetes para o GP de Fórmula 1 (no Algarve), que só acontecerá em outubro. É verdade que houve ajuntamento excessivo de multidões em manifestações políticas e na celebração do 1.º de Maio ou do 25 de Abril. É verdade que muitas das belas praias (e respetivos acessos) da nossa costa estão quase sempre repletas de gente doida para dar um mergulho. É verdade que a Festa do Avante avançará porque é algo que, ao contrário de tantos outros eventos culturais, a lei permite. É verdade que os aviões estão cada vez mais cheios (graças a Deus) e que não cabe um alfinete na maioria dos transportes públicos, em hora de ponta. E é também verdade que há restaurantes com filas de 50 metros à porta, piscinas sem espaço para pôr uma toalha de criança e bares repletos de gente a beber ou a dar uma palavrinha aos ouvidos uns dos outros.
Só não é verdade que se diga que o futebol é diferente de tudo isso, porque o adepto salta, cospe e abraça o vizinho do lado de cada vez que se marca um golo. E não é verdade porque, num estádio de 50 mil... 10 mil estariam a muitos metros de distância uns dos outros. Num estádio de 5 mil... mil só se veriam de binóculos. Com máscara, ao ar livre, sem contactos, com medidas de segurança apertadas à entrada/saída e com muitas mais garantias de segurança sanitária do que aquelas que nos entram, todos os dias, por casa dentro.
O desporto não é uma raça à parte. É peça fundamental da identidade nacional, um entretém saudável para milhares de meninos/meninas e um dos maiores motivos de orgulho nacional. Paga muitos impostos, contribui ativamente para o PIB e dá emprego a dezenas de milhares pessoas. A prova de que todos o reconhecem está à vista: até o primeiro-ministro e o Presidente da República tiveram o prazer de assistir, ao vivo e a cores, a jogos que muitos de nós pagaríamos (bem) para ver na pior cadeira do estádio.
Numa fase de gestão social e humana difíceis e de sensibilidades à flor da pele, o exemplo é tudo. É isso que se espera de quem tem poder de decisão. A capacidade de perceber que devemos rumar todos para o mesmo lado, ao mesmo tempo... e da mesma maneira. Não é nem nunca foi uma questão política. É apenas uma questão de coerência.