Dilemas do presente
Semana após semana, o futebol oferece-nos momentos que elevam a discussão para fasquias quase inultrapassáveis. Isso acontece porque, hoje, há meios evoluídos que permitem olhar para tudo o que acontece até ao mais ínfimo pormenor. As coisas mudaram muito nos últimos anos. O espetáculo cresceu dentro de campo mas ainda mais fora dele. As super lentes estão agora viradas não apenas para as jogadas, mas também para os movimentos individuais dos jogadores, para as expressões faciais dos técnicos e para a exuberância dos adeptos. Nada escapa ao Big Brother. Câmaras e aranhas, gopros e drones, super-slow motions e zooms, Ultra HD’s e afins. É um sem número de armas ferozes, que mostram tudo, mas tudo o que acontece. Se existe, nós vemos. Garantidamente.
É neste contexto, de profunda transparência televisiva e de escrutínio milimétrico, que moramos hoje. A busca incessante de respostas (no caso, sobre lances de jogo e respetivas decisões) parece estar a tornar-nos reféns da tecnologia. E a tecnologia - que é muito útil - não deixa de ter, como qualquer outro medicamente eficaz, fortes efeitos secundários. Um dos mais flagrantes tem a ver com a análise que fazemos dos contactos físicos. Permitidos em desportos como o futebol, o «contacto físico com o adversário» só deixa de ser legal quando é imprudente, negligente ou grosseiro/violento. Se o toque é inevitável para o movimento natural dos jogadores deduz-se que é legal. Se é evitável e aconteceu por falta de atenção ou de cuidado, por má abordagem ou porque não se mediu as consequências da ação... diz-se faltoso.
Em campo, os vários sentidos que um árbitro experiente usa são geralmente suficientes para que distinga uns dos outros: ver a jogada pode ser insuficiente. É preciso senti-la, cheirá-la. Ouvi-la. É preciso deduzir e intuir. Esses são sentidos que a tecnologia não capta nem envia. Os que recebemos, em casa, são nus. Crus. Despidos de vida. Pragmatismo em bruto. E essa versão da realidade leva-nos a emitir opiniões que nem sempre podem corresponder à verdade. Se calhar, o contacto que claramente pareceu ilegal não foi. E, se calhar, o choque que pareceu casual foi irregular. É esta a aprendizagem que nos falta fazer para sermos mais justos na opinião que emitimos. E mais justos com quem tenta fazer justiça, lá dentro.
Este é um caminho que eu, enquanto comentador de arbitragem, devo continuar a percorrer. Há momentos em que é necessário ter a humildade de aceitar que o que fazemos, embora de forma bem-intencionada e profissional, pode nem sempre contribuir para o esclarecimento. Esta é uma constatação que entristece mas não desmotiva. É preciso continuar este rumo, o de tentar decifrar o que as câmaras captam, conjugando-as com as vivências que o relvado ensinou. Mas a tentativa de acompanhar esta mudança, a da velocidade da modernidade, serve também para os técnicos, adeptos e até para os árbitros, que devem ter a perceção que aquilo que tantas vezes analisam in loco pode não ser aquilo que os outros veem cá fora. E aquilo que decidem momentaneamente pode não ser aquilo que o futebol espera que decidam. Letra e espírito da lei, essa dicotomia complexa. Esta vontade de aprender, mútua, de todos e para todos, será meio caminho andado para saborearmos, de forma equilibrada e cada vez mais justa, o melhor da tecnologia, sem matarmos a humanidade do jogo. O desafio é recente, difícil, mas não impossível.