Desfazendo equívocos

OPINIÃO15.03.202115:40

Em Portugal nunca houve processo integrado de recrutamento de atletas não nascidos em Portugal, visando a sua naturalização

Onível desportivo de um país em matéria de competitividade externa depende do talento e das predisposições dos atletas que vingam ao mais alto nível nas competições internacionais. E, sobretudo, das condições que lhes são proporcionadas para que esse talento se possa exprimir. Para que esse talento se exprima é necessário que se pratique desporto e se consiga fazer a seleção e apuramento daqueles que apresentam indicadores de rendimento desportivo elevado.    
Em qualquer setor da atividade, e o desporto não é exceção, a identificação dos seus representantes mais qualificados exerce um efeito positivo de contágio que culmina, em última análise, na mobilização e coesão da opinião pública em torno desse setor e no reconhecimento do seu estatuto e valor social. Uma sociedade que não reconhece a importância dos seus homens e mulheres de excelência dificilmente poderá compreender as medidas e os investimentos, públicos ou privados, dirigidos para o desenvolvimento dos setores onde trabalham.
O investimento desportivo, numa perspetiva de afirmação de excelência, prossegue princípios, critérios e etapas que não são substancialmente diferentes dos adotados noutras áreas. Detetar e identificar os recursos, avaliar o seu potencial de desenvolvimento e valorizar as suas singularidades são passos indispensáveis na construção de um sistema de representação desportiva nacional sólido e sustentável, que não esteja à mercê do acaso ou de circunstancialismos conjunturais.
A evolução do nível desportivo nacional será, convém lembrá-lo, socialmente relevante se for proporcional à evolução física e motora da população infanto/juvenil, no que esta implica de progressos na literacia motora, no desenvolvimento das capacidades e qualidades físicas gerais e especiais, e na elevação do índice geral da condição física. A razão é óbvia, tendo em conta, apenas, argumentos de ordem técnica relativos ao processo de preparação desportiva.
A política desportiva não é apenas uma política pública para o desporto. É mais do que isso. É uma política onde convirjam outras políticas públicas (desde a juventude, à educação, passando pela cultura, saúde, ambiente, turismo, ordenamento do território), mas também é resultado de políticas desportivas e associativas. E a competitividade desportiva não é um processo unívoco e singular dependente exclusivamente de variáveis nacionais. Ela é medida por indicadores e padrões internacionais.
O processo de globalização ocorreu num contexto de elevado grau de desregulação e incentivou, à escala global, a mobilidade de bens, capitais e pessoas. Uma tendência que acentuou políticas de atração e captação de valias com origem exterior aos espaços nacionais, mas úteis aos processos de desenvolvimento nacionais, numa perspetiva de ganhos de competitividade à escala global.
Com o fim da URSS e do bloco socialista, registaram-se mudanças conceptuais, tendo as potências desportivas ocidentais, num certo momento cativadas pelo modelo de elitização fundado numa base alargada de praticantes, adotado outras estratégias de identificação, seleção e promoção dos talentos desportivos. Hoje é o vértice que atrai a base da pirâmide onde se concentra (ou é desejável que se concentre) a massa alargada de praticantes com diversas representações, atitudes e interesses.
Assim se compreende que países organizadores dos Jogos Olímpicos consigam, em poucos anos, e com níveis de financiamento muito elevados e forte investimento na medicalização do rendimento desportivo, apresentar com dignidade competitiva nunca antes vista atletas e equipas em modalidades estranhas à sua cultura desportiva, e que assim continuam quando ultrapassado o exame olímpico. Um dos recursos utilizados foi a construção de elites desportivas recorrendo ao recrutamento da formação desportiva exterior aos países de origem.
A abertura de fronteiras, acompanhadas de uma maior mobilidade na circulação das pessoas e a possibilidade de profissionalização em países economicamente mais competitivos, facilitou a emigração de muitos talentos, parte dos quais optam por uma nova nacionalidade e passam a competir pelos países de acolhimento.
Esta tendência pode menorizar o recrutamento nacional, reduzir a aposta na oferta do processo formativo e introduzir singularidades novas nos sistemas de representação desportiva.
A estrangeirização de alguma da prática desportiva ao mais elevado nível da representação associativa e os processos de naturalização por razões desportivas cresceram, não sendo um exclusivo de Portugal e, nele, desta ou daquela modalidade, mas transversais a todas, embora com graus de distribuição distintas. E a legislação europeia sobre a livre circulação de praticantes só veio acentuar esta tendência.
Finalmente, um outro desenho do mundo com o aparecimento de novos países no continente europeu, resultante da fragmentação de nações com um histórico de elevado desenvolvimento desportivo, após a queda do Muro de Berlim e o colapso do império soviético, alterou significativamente as relações de competitividade desportiva na Europa e no mundo.
A fragmentação de antigas nações em novos países acrescentou outros protagonistas e alterou o ambiente de competitividade desportiva internacional, elevando a sua qualidade particularmente na Europa e no mundo. Esta desagregação criou também um mercado de atletas e treinadores disponíveis, uma espécie de mão de obra de reserva altamente qualificada que passaram a estar disponíveis para integrar as elites desportivas dos países de acolhimento.
O Desporto, por ser uma área em que a competição por países é muito objetiva e mensurável, tem princípios distintos e provoca eventualmente paixões e sentimentos que, eventualmente, noutras áreas não se verificam. Mas esta tendência de estrangeirização não é exclusiva da esfera desportiva, acontece igualmente noutras atividades, porventura sem a mesma mediatização. Vários são os países com campanhas de recrutamento para os seus sistemas nacionais de profissionais formados no estrangeiro (médicos, professores, enfermeiros, engenheiros, cientistas, músicos, bailarinos, etc.) por detetarem lacunas nos seus recursos humanos e precisarem de elevar a qualidade da sua capacidade e competitividade.
Em Portugal, com exceção do futebol, nunca houve um processo integrado de recrutamento de atletas não nascidos em Portugal, visando a sua naturalização e posterior eventual integração em seleções nacionais. O que ocorreu é disperso, circunstancial, muito por força de iniciativas de clubes e de conhecimentos e relações bilaterais, ou até das condições de vida extraordinária de alguns atletas e suas famílias. Mas outros países fizeram-no: o Reino Unido, a Espanha, a França, a Grécia, muitos países do bloco de Leste e alguns países árabes.
Nas últimas três edições dos Jogos Olímpicos a Missão Portuguesa teve em Pequim (num total de 78 atletas) 9 atletas naturalizados, correspondentes a 9 países diferentes; em Londres (num total de 76 atletas) 12 atletas naturalizados de nove países diferentes; no Rio de Janeiro num total de 93 atletas estiveram 18 atletas naturalizados correspondentes a 17 países. Alguns destes atletas iniciaram o processo de formação desportiva em Portugal, outros continuaram-no, outros já tinham representações internacionais, incluindo as participações olímpicas pelos países de origem. Uma tendência que se deverá manter.
O que fazer?
Aos Estados pede-se uma regulação mais consensual quanto aos critérios da atribuição da nacionalidade, sendo certo que se trata de uma matéria que cai na orbita das respetivas soberanias. Aos Estados que pertencem a organizações internacionais, como a União Europeia, exige-se uma harmonização da legislação para assegurar as próprias regras internas de concorrência. Às federações desportivas internacionais um sentido de harmonização na tramitação e equiparação dos processos de representação desportiva por parte das federações desportivas internacionais cujos critérios de admissibilidade dos atletas naturalizados são muito contraditórios. E é um processo que carece de regulação que combata também o tráfico humano, que é socialmente inaceitável e um risco evidente.
Mas este é um tempo que já não volta atrás, pelo que o desafio que se coloca às políticas públicas e associativas num mundo global deverá ser o de aproveitar as elites desportivas que escolhem Portugal para competir ao mais elevado nível, no sentido de mobilizar, pelo exemplo de excelência que constituem, o aparecimento de novos praticantes alargando a base da pirâmide de crescimento desportivo e deste modo cumprir um desiderato que, antes de ser desportivo, é de natureza social.
 

Pedro Pablo Pichardo nasceu em Cuba e ganhou para Portugal a medalha de ouro em Torun