Desagradavelmente familiar, surpreendentemente desagradável

OPINIÃO13.12.202205:30

Um dia, mais cedo que tarde, seremos capazes de lá chegar. Basta olhar para todo o talento que vimos dentro de campo, ainda que por pouco tempo

OMundial da seleção portuguesa terminou para mim de forma desagradavelmente familiar e surpreendentemente desagradável. Por um lado, já estivemos aqui muito mais vezes do que no pódio. Passei os últimos meses a convencer-me de que não tínhamos qualquer hipótese de vencer este Mundial e encontrei sem grande esforço motivos para antipatizar com esta Seleção, o maior dos quais a força das circunstâncias que determinam a forma como a equipa se apresenta em campo. Estou a referir-me a Fernando Santos, como é evidente, um homem a quem já uma vez jurei gratidão eterna, até essa dívida se pagar e ficar eu como credor.
 
Desagradavelmente familiar, e surpreendentemente desagradável porque, em poucos dias, a seleção portuguesa ultrapassou uma exibição pobre - e habitual - frente à Coreia do Sul, em que todos os problemas do costume pareceram vir ao de cima, para dar a volta por cima e despachar a Suíça com um atropelamento e fuga para os quartos de final. A euforia chegou mesmo a tomar conta de mim por breves instantes, pelo menos até rever na minha cabeça grande parte do jogo e ser forçado a concluir que jogáramos contra uma Suíça absurdamente permissiva, que pareceu desistir do jogo a partir do primeiro golo sofrido. Ainda que a vitória tenha sido obtida a bater em mortos, como se diz na gíria, não deixou de ser um espetáculo de futebol magnífico, um dos melhores a que os adeptos tiveram direito nesta prova. Por muito que as circunstâncias tivessem facilitado, a equipa soube conquistar esse espaço para mostrar tudo o que é capaz de fazer num dia bom. Tivemos direito a uma das mais belas exibições de uma equipa portuguesa em muitos anos, talvez desde sempre. Mesmo céticos como eu resistiram à racionalidade e, nos dias que se seguiram, repetiram para si mesmos que só faltavam três jogos, e que a confiança demonstrada naquele jogo podia ser o rastilho para um feito histórico.

Nem tudo nisto é novo. Ninguém duvida que a equipa portuguesa é teoricamente capaz de vencer sete jogos consecutivos numa grande competição, mas uns quantos de nós têm mesmo muita dificuldade em acreditar que algum dia isso possa vir a acontecer num Mundial. No entanto, aqueles dias entre a vitória sobre a Suíça e a derrota frente a Marrocos contiveram o grande sonho dos portugueses, sem dúvida o maior (o único?) que este país consegue convocar coletivamente. Mas, talvez por já ter passado tempo suficiente desde a vitória de 2016, existe hoje uma relação diferente com o tema das grandes conquistas no futebol. 
 

O trote elegantíssimo de João Félix não chegou para ultrapassar Marrocos nos quartos de final do Mundial do Catar


Quando vencemos em 2016, todos sentiram que aquela era a vingança por tantas outras conquistas das quais fomos espoliados, geralmente pela nossa incompetência ou inexperiência. Foi também daí que veio aquela nefasta ideologia segundo a qual pouco importa se jogamos bem ou mal. Tínhamos mesmo era de ganhar aquilo, de uma vez por todas, custasse o que custasse, incluindo até tratar bem a bola. Corta para 2022 e ao meu lado no café sentam-se dois rapazes engalfinhados numa discussão, minutos antes de sofrermos o golo de Marrocos, sobre se o Presidente da República deve ir à final ou não. A uni-los, uma só convicção: a única coisa indiscutível neste acesso debate é mesmo a nossa presença na final. A vingança dos pobres em 2016 deu lugar a uma certa convicção inabalável de que uma série de títulos que não nos pertencem, e que a teoria das probabilidades tende a afastar de nós, são o inevitável corolário para um pequeno país predestinado ao sucesso. 

Foi surpreendentemente desagradável porque aquela meia dúzia de golos nos deu esperança e porque, de facto, é muito difícil olhar para um grupo de jogadores como este e não ver, quase sempre, um potencial campeão mundial. Digo isto mesmo sabendo que o atual selecionador não é quem pode tirar melhor partido das qualidades destes jogadores. Não chego ao ponto de dizer que podíamos ser campeões mundiais apesar de Fernando Santos porque foi o próprio quem mexeu na equipa ao longo desta competição e com isso ajudou a melhorar o seu rendimento, mas são muitos anos a observar o calculismo do selecionador nacional, e, mais uma vez, parece-me que perdemos frente a Marrocos porque fomos diminuídos por decisões suas.

É duro. Estas longas semanas de Mundial, que inicialmente me pareceram um castigo perverso pensado para prejudicar os benfiquistas, sabem agora a tão pouco. Depois do trote elegantíssimo de João Félix, da letalidade formidável de Gonçalo Ramos, do bailado tático de Bruno Fernandes, de um golaço do suplente hiperluxuoso Rafael Leão, entre outros, ficou difícil acreditar que logo a seguir viria o banho de realidade. Terminado o jogo queixei-me de tudo o que tinha visto como se a inoperância fosse a mesma de sempre, mas isso seria apenas estranhamente familiar. Esta derrota foi diferente. Foi surpreendentemente desagradável porque, no meio de muita coisa familiar, tive um vislumbre de futuro e quis que o próximo Mundial não fosse só daqui a quatro anos ou que o próximo Europeu não fosse só daqui a dois anos. Vi ali o tal rastilho, afinal mais longo do que me parecera frente à Suíça, mas um rastilho de grandes vitórias. Talvez tenha sido até mais honroso do que me pareceu a quente. Uma seleção em que muitos dos melhores jogadores fizeram ali a sua primeira competição internacional conseguiu terminar a prova como uma das oito melhores do mundo. É mais fácil de digerir quando não partimos do pressuposto que o título mundial é o destino inevitável destes jogadores e dos portugueses. Não é. Mas também é mais fácil sonhar que um dia, mais cedo que tarde, seremos capazes de lá chegar. Basta olhar para todo o talento que vimos dentro de campo, ainda que por pouco tempo.

Jorge Valdano, com quem concordo 99 em cada 100 vezes, explicava há uns dias em entrevista ao The Guardian que o futebol de hoje é uma coisa homogénea, talvez demasiado, por oposição a uma ideia mais antiga em que o futebol vinha de um lugar: a modalidade praticada pelo Brasil vinha do futebol praticado no Brasil, a versão argentina vinha da Argentina, e a alemã vinha da Alemanha. Concordo que essa mesmice ameaça e muito o futebol, mas sinto que vi na seleção portuguesa, ainda que por pouco tempo, essa coisa que parece desaparecer: um futebol imediatamente reconhecível, de habilidade taticamente informada, uma forma quase irritante de sermos muito mais elegantes do que os outros a jogar à bola, um futebol vindo de um lugar que só pode ser o nosso. Esse não é ainda o lugar dos crónicos vencedores, mas é um sítio em que o futebol dá gosto ver. Custa mais perder assim, mas vai saber melhor no dia em que voltarmos a vencer.