Depois do apito
Árbitros detestam errar. Faz parte mas custa. O diabo nem sempre veste de preto
IMAGINEM um jogo no qual esteja muita coisa em disputa. Para quem o arbitra o privilégio é enorme, porque significa que a sua estrutura confiou-lhe um espectáculo importante, impactante. É um prémio valioso para a autoestima de qualquer profissional. Um elogio tácito à sua qualidade, competência e momento de forma. Para que percebam, a sensação será comparável à do jogador que sabe que será titular num clássico ou dérbi. Os jogos são todos iguais, é certo, mas há uns mais especiais do que outros e não há interveniente algum que não o sinta assim, na cabeça e no coração. Todos querem estar onde a ação está.
Agora imaginem que os 90 minutos foram exatamente como se previa: intensos, cheios de lances complicados e situações difíceis de resolver. Para a equipa de arbitragem, o apito final acaba por ser o fim de uma pequena tormenta. Um árbitro sente quando as coisas lhe correm bem ou mal e, em jogos assim, só o último silvo lhes traz alguma paz de espírito. De novo, a comparação: a mesma paz de espírito que trará aos jogadores da equipa a quem tudo correu mal. O que eles mais querem é que o jogo acabe rápido.
Quando tudo termina, começa outra coisa qualquer. Começa um desafio cheio de momentos delicados e sensíveis, em que o caráter e arcaboiço moral são fundamentais. Aos primeiros sinais de insatisfação no relvado, juntam-se críticas duras e palavras pouco simpáticas. Há tensão no ar, gente nervosa e frustração coletiva. É normal, porque alguns jogos são mesmo assim. No entanto há abordagens muito para lá do aceitável - que não são nem podem se aceites como normais -, geralmente provocadas por pessoas de bem que, a espaços, perderam a lucidez. A esse ambiente juntam-se depois os gritos de adeptos com nervos a ferver. Não é fácil, nada fácil.
A coisa digere-se pior se, ainda que sem provas televisivas ou mensagens de amigos, houver a noção de que o trabalho foi infeliz. Aí desce à mente a hipótese de os índios até terem razão, o que aprofunda um sentimento depressivo latente. Algo que, in loco, é muito difícil de lidar. Essa culpa inconsciente corrói. Corrói um árbitro como corroerá um defesa que faça um autogolo ou a um atacante que falhe um penálti. Não houve intenção, não houve maldade, mas que sabe o mundo disso?
O caminho para o balneário pode ser calmo ou acidentado. Depende do tempo que demoram a cumprir o trajeto, de quem se aproxima, de tudo o que de inesperado possa surgir. Depende também da atitude do próprio árbitro.
Lá dentro, em porto seguro e no meio dos seus, a conversa é outra. Quando chegam ao balneário, os árbitros podem finalmente exprimir o que sentem. Podem conversar entre si e contar tudo o que lhes passa pela cabeça. Lá dentro são gente que sente. É geralmente aí que soltam o primeiro grito ou dão o primeiro murro na mesa. É aí que libertam, sem filtros, tudo o que lhes vai na alma.
Dentro do balneário, os árbitros já não são apenas aqueles seres robotizados, que desfilaram autoridade e poder de decisão nas quatro linhas. São almas vulneráveis, capazes de ler tudo o que se passou de bom de mau, de certo e errado.
Não sei se haverá algum profissional - seja de que área for - que fique feliz ou despreocupado ao constatar que fez mal o seu trabalho. Não pode haver ninguém sério, íntegro e minimamente responsável que siga em frente de imediato, sem tirar ilações ou assumir responsabilidade.
Sei que jogadores, treinadores e árbitros detestam perder, detestam errar, detestam expor-se a essa vulnerabilidade. É fácil perceber porquê: os erros são a antítese daquilo que os move e, em alta competição, são quase sempre sinónimo de censura excessiva. As falhas, no futebol de topo, são vistas e revistas, pisadas e repisadas, deixando um rasto de sangue fácil de cheirar a milhas. Não é um registo fácil de encaixar, em termos pessoais e emocionais. Faz parte, é certo, mas custa e vai custar sempre a quem é decente. Às vezes é bom que nos consigamos (tentar) colocar no papel dos outros. O diabo nem sempre veste de preto.