Defeitos e virtudes de Ronaldo

OPINIÃO05.01.202305:30

Cristiano Ronaldo vive numa bolha onde só podem entrar aqueles que lhe alimentam o ego e onde o contraditório é palavra maldita

N EM mesmo um craque de experiência acumulada consegue dominar na plenitude o jogo das palavras. Foram várias as incoerências que ouvimos de Cristiano Ronaldo nos últimos meses, a última das quais a de tentar justificar a transferência para a Arábia Saudita pelo «grande desafio» e porque ali existe uma «liga competitiva». Todos sabemos que talvez ficasse mal dizer a mais pura das verdades (foi pelo dinheiro), mas uma declaração destas parece confirmar a tese de que CR7 vive numa bolha onde só podem entrar aqueles que lhe alimentam o ego (lembram-se quantas vezes Piers Morgan disse que ele era o melhor jogador do mundo durante aquela célebre entrevista antes do Mundial?) e onde o contraditório é palavra maldita. Foi uma pena, por exemplo, não ouvir mais esclarecimentos sobre que clubes quiseram contratá-lo, inclusive de «Portugal», como o próprio declarou na apresentação no Al Nassr, o que leva a fazer algumas perguntas: Foi o Sporting, numa derradeira tentativa de fazer regressar o filho pródigo a um clube cuja academia tem o nome dele? Foi o Benfica, a pensar numa eventual saída de Gonçalo Ramos? Foi o FC Porto, para cavalgar a recuperação de pontos perdidos para o Benfica? Foi o SC Braga, agora com capital e know how do Catar, a querer descolar do ponto de vista do marketing?

Nada disto diminui o extraordinário magnetismo que Ronaldo continua a possuir. Haver mais de 20 mil pessoas em estado de euforia, histeria, deslumbramento e esperança para receber um futebolista que completa 38 anos daqui a um mês é um feito extraordinário, seja na Arábia Saudita (onde, já agora, se realizam grandes eventos, desde Supertaças de Espanha, Fórmula 1, Dakar e afins), na China, no Peru ou nas ilhas Galápagos. Quando terminar a carreira (e não faltará assim tanto), Cristiano será recordado, também, por este endeusamento que gera em tantas pessoas de várias gerações, credos e geografias. O povo nunca foi e nunca será tolo, e se CR7 ainda continua a arrastar multidões não é só porque vive do passado, mas porque o internacional português, aos 37 anos e 11 meses, ainda é capaz de deixar um mar de gente a sonhar com o futuro.

Segue-se uma etapa decisiva na Seleção Nacional: jogando Cristiano Ronaldo num campeonato periférico, cujas partidas nem poderemos sequer assistir na televisão (isto ao dia em que esta crónica é escrita, porque acredito que o mercado se vai mexer para corresponder à procura), que papel terá na equipa? Mesmo que regresse aos golos (e vai precisar de recuperar o tempo perdido porque à ausência de pré-época somou agora uma paragem competitiva após o Mundial), quanto vai valer um golo na Arábia no equilíbrio das escolhas? Vale tanto quanto nos principais campeonatos europeus, incluindo o português? Irá o novo selecionador impor a condição de só assumir o cargo se CR7 aceitar ser suplente? E será isso o melhor para o balneário?

Por ser quem é e pelo que conquistou, Cristiano não poderá permitir que outros tomem a decisão por ele. Muito em breve, Ronaldo terá de pensar na hipótese de dar lugar a outros para não arriscar a saída pela porta pequena. Ele não merece (nem nós merecemos...) a criação de uma imagem diferente da de CR7 como o melhor jogador português de todos os tempos.