Como resistir a um jogo de futebol sem adeptos?

OPINIÃO01.05.202004:00

Jordan & Jackson - última dança

Agora que estamos (quase) todos fechados em casa, há uma rara oportunidade para quem ama o desporto de partilhar algo de especial com aqueles de entre os nossos que não sentem tal devoção. Essa oportunidade chama-se The last dance e consta de uma série televisiva exibida na Netflix e composta, para já, por quatro episódios. O argumento, os protagonistas e os cenários são os de uma crónica sobre a trajectória ascensional da equipa dos Chicago Bulls, da NBA, com particular destaque natural para o melhor jogador de sempre (Michael Jordan) e para o treinador Phil Jackson. Aliás, já Miguel Cardoso Pereira, nas páginas deste jornal, havia assinalado esta série. Por mim limito-me a dizer o seguinte: só aparentemente é sobre basquetebol. Na verdade é mais uma lição e um retrato sobre a natureza humana. Se o desporto fosse uma religião esta série seria o seu suporte proselitista.

A bola e a máscara

Fernando Pessoa, ou melhor, o seu heterónimo Álvaro de Campos (1890-1935), engenheiro naval nascido em Tavira, escreveu em 1928 (mais) um maravilhoso - e imortal - poema intitulado Tabacaria. Por razões que julgo mais ou menos óbvias, nos últimos dias tive de o reler na íntegra. Porque é precisamente nele que residem os seguintes versos:           

«Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

(…)

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.»

Não será necessário, estou em crer, assistir a um jogo ao vivo do grande Canelas para perceber que o futebol é um jogo de contacto. E o que ficou agora dito vale também para aqueles que se referem ao futebol não como um desporto sublime mas como uma qualquer indústria ou Business Center. Abra-se agora um breve parênteses só para deixar uma pergunta que serve como nota recordatória: quem é que já viu um filme, de entre os incontáveis já feitos que envolvam a máfia, que não contemple esta frase, dita pelo executante à iminente vítima, epítome de toda uma identidade: «Não é nada de pessoal, apenas business»? Fechar parênteses.

Em Portugal, os campeonatos de andebol, basquetebol, hóquei em patins, voleibol e futsal estão já definitivamente cancelados, ou seja, extintos, ficando apenas por decidir o que fazer com os campeonatos profissionais de futebol (Liga e Liga 2), suspensos desde 12 de Março. Ora bem, ontem mesmo o Governo anunciou que vai permitir o reatamento das provas desportivas em recinto aberto a partir de 1 de Junho (Dia Mundial da Criança), data que coincide com a última fase do plano de retoma da actividade económica no nosso país, após o fim do estado de emergência, decretado face à pandemia causada pelo vírus chinês. Esta permissão, porém, vai de par com uma condição: o reinício da prática de desportos colectivos não pode ocorrer com público.

Sou, por natureza e feitio, optimista. Mas devo confessar o meu receio sobre a subsistência de riscos que poderão assim ser exponenciados. Para além de que, pessoalmente, se não consigo suportar café sem cafeína, cigarros sem nicotina, cerveja sem álcool, como poderei resistir a um jogo de futebol sem adeptos?