Como assobiar em alemão?
Os adeptos têm não só o direito ao protesto como, por vezes, a obrigação. Respeitar é ser exigente e vaiar pode ser um gesto de respeito
Embirro com quem critica os adeptos por, após uma derrota, assobiarem a equipa. Como quem defende que o papel do adepto é apenas o de apoiar e consolar quando as coisas correm mal. Isso é não perceber o papel do adepto e não mostrar consciência sobre o impacto de uma derrota e a melhor forma de reagir.
Os únicos adeptos a quem é legítimo pedir-se que apenas batam palmas chamam-se… figurantes. Ocupam cadeiras em programas televisivos e são pagos para isso. O adepto do futebol não é um figurante. Não só é ele quem paga - e não pouco - para assistir ao jogo no estádio, como é ele quem também joga. Os jogadores chegam e partem, só os adeptos ficam, fiéis depositários de uma identidade.
Um adepto não vai ao estádio só para apoiar a equipa, só para assistir a um bom espetáculo, só para, numa adaptação de Karl Marx, se servir do ópio do povo que lhe faça esquecer as agruras da vida. Um adepto vai ao estádio para uma partilha, um cerimonial de comunhão em que a entrega dos jogadores e o resultado do jogo reflita a matriz identitária do clube com que se identifica. E quanto maior a grandeza do clube, maior a exigência. Porque os clubes têm História e os adeptos têm Memória.
Os benfiquistas têm razão
Seja qual for o ângulo de análise, não há um único que nos permita encarar como entendível sequer - quanto mais aceitável - a campanha do Benfica na presente edição da Liga dos Campeões. Ser a equipa, em 32, com o pior registo é de todo inaceitável. Os adeptos do Benfica são os primeiros a concordar comigo. E protestaram com vigor. E só tinham de protestar. Algo de errado se passaria se os adeptos do Benfica, depositários da História e Memória, convivessem bem com as derrotas e andassem com paninhos quentes. Mais: se eu fosse jogador e treinador do Benfica, haveria de considerar até um insulto se os adeptos batessem palmas e entoassem cânticos de apoio após as derrotas e, acima de tudo, exibições medíocres.
Atenção: estes mesmos adeptos já apoiaram o Benfica em jogos que correram mal mas em que eles sentiram que a equipa deu tudo e estava num daqueles dias em que mais valia nem ter saído de casa. O adepto é mais sábio do que se pensa. Pode ser muito emotivo, mas sabe o que vê. No mínimo, mesmo a correr mal, quer que os jogadores esperneiem, tenham aquele esgar de dor de quem vê o chão a fugir-lhes.
O adepto exige também que os jogadores e treinador não só sintam a sua dor, como sofram, genuinamente, com eles. Odeiam aquela conversa do «foi um dia que correu mal»; «só falhámos na finalização»; «vamos levantar a cabeça»; «aprendemos com os erros», «fomos infelizes» ou «vamos melhorar». Não, isso, quando muito, fica para depois. O adepto que sofre precisa de ouvir o treinador dizer que é «burro que nem uma porta»; precisa que os jogadores se insultem a eles mesmos por não terem estado à altura da obrigação; quer ver nos rostos deles a deceção e a raiva; quer que eles façam igual ao que outras gerações fizeram no passado: que se fechem em casa, só saiam para ir ao treino, pela vergonha de encarar as pessoas na rua.
Pode repetir Roger Schmdit?
Encarar as críticas dos adeptos como uma falta de amor ao clube faz tanto sentido como defender-se que um pai não gosta do filho cada vez que o repreende por ter feito algo errado. Pior ainda é fingir-se que não se percebeu o protesto, como Roger Schmidt fez no final do jogo com o Arouca: «Para ser sincero, nem me apercebi de qualquer contestação após o jogo [empate com Casa Pia]. Talvez seja uma das vantagens de não falar português.»
Em primeiro lugar, Roger Schmidt vai ter de me ensinar como se assobia em alemão... Em segundo, revelou falta de empatia com o sofrimento de quem, antes dele e depois dele, vive o Benfica. Porque, naquela hora, vaiar a equipa era, mais do que um desabafo, uma obrigação. E os adeptos apenas pedem que a equipa esteja tão frustrada quanto eles. E só entendendo e sofrendo como os adeptos é que se pode dar a volta.
Para Fernando Pessoa, «a memória é a consciência inserida no tempo». Já para Napoleão, «uma cabeça sem memória é uma praça sem guarnição.» Cabe a Schmidt e aos jogadores terem sempre bem presente que o tempo moldou nos adeptos uma identidade de conquistas e que entrar em campo sem esse sentido de História e Memória é entrar numa «praça sem guarnição», ou seja, sem soldados e sem armas. Interpretando o que Nietzsche, que nasceu na atual Alemanha, defendia: «A História só é tolerável para mentalidades fortes.»
No mais, a missão de Schmidt é resgatar o Benfica à época passada. A vitória com o Arouca está longe de justificar que se dê já alta. Conselhos? Talvez ler o alemão Hermann Hesse, Nobel da Literatura: «Nada posso dar-lhe que já não exista em si mesmo. Não posso abrir-lhe outro mundo além do que há em sua própria alma. Não sou aquele que sabe, mas aquele que busca.»
De P. Gonçalves a Conceição
Não, o azar de Pedro Gonçalves não é ter nascido numa geração em que a concorrência na Seleção é maior do que nunca. O azar de Pedro Gonçalves é ter um selecionador que, de forma legítima, entende que não está no top 10/12 dos médios/extremos portugueses. Respeitemos as opiniões, elogie-se a forma como Martínez justificou a ausência das convocatórias e a classe de Rúben Amorim na resposta. Discordar e manter a elevação e cordialidade é uma arte. No caso de Amorim nem é de estranhar.
Classe teve também Sérgio Conceição ao abordar a entrevista de André Villas-Boas, mormente quando o futuro candidato à presidência do FC Porto mostrou estranheza por o clube ainda não ter renovado com o treinador. Conceição foi elegante, inteligente, equidistante. E Villas-Boas sabe que não é fácil o equilíbrio quando o tema é Sérgio Conceição: tem de falar do treinador porque dá votos - não tenho qualquer dúvida que, hoje, Conceição é mais consensual que Pinto da Costa - mas não o pode arrastar para a campanha eleitoral sob pena do treinador lhe puxar o tapete pela fidelidade/gratidão que sente com Pinto da Costa.
Rúben e Conceição exemplares. Prova que o diabo pode morar nas respostas, nunca nas perguntas.