OPINIÃO Chagas
Queixos no alcatrão, recordações de Artur Jorge e o humor negro da AG dos dragões
1 Quando o verão começava no final da primavera e só terminava no início do outono, quatro meses de férias escolares em que a rua era o palco de todas as brincadeiras, só interrompidas com a voz única dos nossos pais a chamar-nos em tom crescente de irritação à medida que fingíamos não ouvir... Em agosto de 1983, num desses verões azuis, enquanto a Volta a Portugal serpenteava o país, meti na cabeça que poderia ser o novo Marco Chagas, na altura transferido do FC Porto para a Mako Jeans (vencedor da Grandíssima com as duas camisolas). Sem pedalada sequer para me afastar do carro vassoura, certo dia, após subir o Chafariz das Terras na minha bicla, a Senhora da Graça ali da zona, comecei a descer sem mãos nos travões e às tantas perdi o controlo da máquina a desfazer uma curva, já (in)seguro de que estava prestes a bater com os queixos no alcatrão.
Chagas? Só as que ficaram no corpo. E assim percebi que a minha queda para o ciclismo era pouca e dolorosa. O gosto pelas façanhas dos bravos do pelotão não se perdeu, mesmo perdida a aura de falsos grandes campeões contaminados com a praga das substâncias proibidas, cujo maior símbolo é Lance Armstrong — tantas tardes de julho desperdiçadas a torcer pelo batoteiro no Tour. A miséria humana em todo o esplendor, o doping, um mundo perverso que o julgamento da operação Prova Limpa — desmascarou a farsa da W52-FC Porto — está novamente a trazer à tona em Portugal com depoimentos em tribunal arrepiantes e chocantes. Talvez os próprios já não se lembrem, mas tempos houve em que aqueles que estão no banco dos réus sonharam ser o Marco Chagas que brilhava nas estradas das suas infâncias. Que pena o tombo que estão agora a dar não possa terminar simplesmente no asfalto.
2 «Pai, morreu o treinador que quase atropelámos», assim fiquei a saber, pelo Miguel, o meu filho mais velho, que Artur Jorge partira. O treinador das «coisas bonitas» tinha uma casa na rua dos meus pais, naquele enclave de tantas memórias entre a Lapa e a Pampulha, e certo dia, a fazer marcha-atrás para não perder tempo a estacionar, ouvi um estrondo na traseira. Parei, saí do carro e nem queria acreditar. «Mister, desculpe», disse, enquanto Artur Jorge, feliz por não ter passado despercebido quando já não fazia manchetes — «como é que me reconheceu?, perguntou-me —, desvalorizava o incidente: «Bati com a mão só para alertá-lo que estava aqui.» A conversa durou uns cinco minutos, com o meu miúdo a assistir, sem perceber a importância do momento. «Mister, mais ou menos aqui nestes paralelepípedos, na noite de 27 de maio de 1987, eu e vários amigos tentámos imitar o calcanhar de Madjer.» O rei Artur sorriu, eu também, o Miguel perguntou-me, apenas, por que razão não podia jogar à bola na rua como eu joguei…
3 A Assembleia Geral do FC Porto de 13/11/2023 voltou à baila com piada de José Eduardo Moniz, diretor-geral da TVI, quando associou conflitos mundiais à AG. Há limites para o humor? Tabus? Vale o que a consciência de cada um determina? Ou a lei deve impor barreiras? Temas para reflexão... Mas a primeira tentativa de fazer rir sobre a AG foi de Pinto da Costa, na reação às macacadas. «Parece que andou tudo aos tiros mas ninguém foi para o hospital», disse, palavras que as vítimas da AG devem ter interpretado como... humor negro.