Caro Fábio Martins

OPINIÃO13.02.202003:00

NINGUÉM com dose mínima de sensibilidade pode ficar indiferente ao alerta que deixaste nas redes sociais sobre o discurso de ódio que vigora atualmente no futebol e que atinge diretamente os jogadores. É, de facto, «execrável», utilizando as tuas palavras, o que estamos a viver. Mas não é um problema da modalidade em si, é antes um mal de uma extensão inimaginável e transversal.


As sociedades estão polarizadas como nunca e as redes sociais ajudaram a tribalizar comunidades. Nos Estados Unidos, por exemplo, é incrível como no espaço de 10 anos aumentou a percentagem de republicanos a terem medo de democratas e vice-versa. Números que em 2010 andavam na casa dos 15 por cento passou para mais de 50%. Ou seja, metade dos eleitores tradicionalmente afetos a um partido têm medo do partido adversário. E o medo, como todos sabemos, é um sentimento primário, um laboratório perfeito para explorar fraquezas e exacerbar virtudes.


Com as redes sociais esse fenómeno cresceu a galope. Porque foi eliminando os principais filtros (jornais, partidos, associações, etc). O algoritmo tem vindo a transformar a forma de pensar das pessoas, que cada vez mais só leem, veem e ouvem aquilo que gostam, desabituando-se do contraditório. O escândalo do Cambridge Analytica mostrou que milhões de cidadãos andavam a receber informações falsas (fake news) nas suas timeline de Facebook sobre a campanha de Hillary Clinton nas presidenciais americanas sem que as outras pessoas (aquelas cujos perfis indicam que não acreditavam naqueles conteúdos) soubessem. E o mesmo aconteceu nas últimas eleições no Brasil com o WhatsApp. O veneno passou por debaixo dos narizes de todos, subversivo, infiltrando-se cirurgicamente apenas nas camadas da população que interessava - aquelas que decidem quem é o próximo presidente da república.


Os clubes de futebol em Portugal (pelo menos aqueles que têm meios financeiros para isso) também perceberam como funcionam as coisas e apostaram em força nas várias formas de terrorismo da palavra. Não apenas no reforço do peso da figura dos diretores de comunicação mas essencialmente na disseminação online da cartilha com a criação de  centenas de perfis falsos, trols e contas nas redes sociais aparentemente feitas por adeptos que no fundo são apenas extensões das grandes máquinas de propaganda e desinformação.


Ora, meu caro Fábio Martins,  já dizia Jorge Jesus quando ainda treinava o Estrela da Amadora: «Em Portugal as pessoas gostam mais dos clubes do que de futebol.» Só que nessa altura ainda se falava em clubismo; agora é clubite - é mais agudo, inflamado e tende a infetar. Há 20/30 anos havia guerras verbais mas com uma periodicidade diferente, nada que se compare aos dias de hoje, não apenas na diversidade de plataformas mas na cadência da informação e na ultrapassagem de todos os limites éticos, como tu e muitos dos teus colegas já sentiram.


É um cancro que temos, Fábio, o futebol português está mesmo doente. Poderia elencar aqui tantos episódios mas seria fastidioso e porque de diagnósticos estamos todos fartos - os problemas estão mais do que identificados. O que se pretende é uma cura. Que terá se passar pelo poder político. Não pela via do paternalismo estatal para que este defina o que uns e outros têm de dizer ou fazer mas sim pela possibilidade de mudar fundamentos. Perceber, por exemplo, se a Lei de Bases do Sistema Desportivo ainda se coaduna com o futebol profissional; se o Governo não deveria impor, como se fez em Espanha, uma centralização dos direitos televisivos; se o mesmo Governo não deveria criar um amplo debate sobre o estado da nação fora das paredes das tantas vezes inócuas comissões parlamentares, pedindo responsabilidades aos principais dirigentes - e tendo não apenas a Secretaria de Estado da Juventude e Desporto envolvida, mas também o Ministério da Economia, porque é de uma indústria que estamos a falar (vale 0,2 % do PIB).


Vamos acreditar, Fábio, que as coisas vão melhorar. Não desistas porque jogadores assim e equipas como o Famalicão é o que nos faz continuar a gostar deste extraordinário desporto que é o futebol.