Benfica: Narrar o inenarrável
Vasco Mendonça critica Bruno Lage e Rui Costa (Foto Miguel Nunes)

OPINIÃO DE VASCO MENDONÇA Benfica: Narrar o inenarrável

OPINIÃO28.01.202508:00

Selvagem e Sentimental é o espaço de opinião semanal de Vasco Mendonça, adepto do Benfica

Os últimos dias vividos no Benfica são uma vergonha para quem deveria representar o clube com respeito pelo emblema e com uma consciência diária da instituição que representa. Todos, desde quem se senta em frente aos jornalistas e dá a cara, até quem fica a assistir, aparentemente impávido e sereno, ao acidente na estrada.

Comecemos pelo início. Na noite da derrota contra o Casa Pia, o presidente Rui Costa resolveu, mais uma vez, utilizar a linguagem gestual para, se bem percebi, persuadir os Benfiquistas de que sente como eles, esquecendo-se que não visita estádios de futebol em Portugal na qualidade de adepto do Benfica, mas sim enquanto presidente do clube. O número vai-se desgastando rapidamente à medida que o Benfica soma derrotas dentro de campo. Rui Costa tem todo o direito de ser adepto, mas os anos que leva a ocupar o cargo já deviam ter-lhe imposto alguma maturidade. Pedir-lhe isto não é exigir muito; é exigir o mínimo de um presidente do Benfica. Preferia que Rui Costa saísse da bancada antes do fim dos jogos, mas para celebrar vitórias com jogadores e treinador, e não para repetir esta figura de estilo que me faz lembrar os momentos, já caricaturais, em que começa a responder a perguntas de jornalistas explicando que é Benfiquista desde pequenino. Rui Costa parece ter-se esquecido também de que é o principal responsável pelas circunstâncias a que assistimos em Rio Maior, e não uma vítima. Sabemos bem quem são as verdadeiras vítimas deste triste espetáculo: os sócios e adeptos que têm sido regularmente obrigados a assistir a prestações inconsistentes e pouco meritórias dentro de campo, regularmente coroadas com episódios fora dele.

Pois bem, o ciclo de Rui Costa já nos ensinou que os meses parecem durar anos e que uma tragédia quase nunca vem só. Quando achávamos que a derrota em Rio Maior, após uma exibição medíocre, seguida da vitória de um adversário direto, era a pior coisa que nos podia acontecer naquele fim de semana, uma combinação de fatores patrocinada pela direção do Benfica criou uma sequência de acontecimentos tão inenarrável, tão caótica, tão embaraçosa e tão mal gerida que merece ser estudada por todos os interessados em comunicação e relações públicas – o que não deixa de ser irónico. Num clube capturado por tantos guionistas na sombra, quase deu a sensação de que estes se juntaram para planear a crise perfeita e, no processo, encontrar um culpado mais conveniente.

Sei que o assunto tem merecido análise de muita gente, mas quase todos o fazem a partir de um lugar de analista. Sinto que devo explicar como é viver isto na condição de adepto. É verdade que a emoção com que nós, adeptos, vivemos tudo isto pode levar a melhor em alguns momentos e, até aqui, já disse coisas que não devia. Mas, por muito que tentasse disfarçar, não conseguiria negar que é a partir deste lugar que observo a vida do Benfica. Quando liguei a televisão e percebi que havia adeptos nas imediações do estádio, assim como um dispositivo policial, pareceu-me prudente que assim fosse. Ânimos exaltados entre os adeptos e a equipa, a poucos dias de um jogo crucial em Turim, poderiam ser uma combinação explosiva. Já tinha bastado a reação desnecessária de Bruno Lage junto de alguns adeptos em Rio Maior. Fizeram bem em ter lá polícia no estádio, pensei eu. A última coisa de que o clube precisa neste momento é de mais folclore num país apostado em fazer do Benfica um dos mais rentáveis produtos de entretenimento.

Poucos minutos depois, recebo uma mensagem áudio no WhatsApp, eu e milhares de adeptos. Era um minuto e meio de Bruno Lage a colocar em causa o projeto desportivo do Benfica tal como o conhecemos. Ouvi uma vez e achei que era uma brincadeira de algum adepto com tempo livre e uma voz semelhante. Não é possível que uma coisa destas aconteça. Na dúvida, ouvi mais uma meia dúzia de vezes para ter a certeza de que não era a inteligência artificial que traiu o deputado Miguel Arruda. Poucos minutos depois, outra mensagem confirmou a veracidade da gravação e deu-lhe contexto. Afinal, tinha havido adeptos no estádio, com acesso privilegiado ao treinador do Benfica. Este entendeu que era oportuno passar largos minutos a discutir o momento do clube. Um desses adeptos, imbuído de um Benfiquismo muito duvidoso, decidiu divulgar parte de uma conversa privada e agravar a crise já instalada.

Pareceu-me evidente que a situação merecia decisões e esclarecimentos, mas não aqueles que se vieram a verificar. Menos de 24 horas depois, o Benfica anunciou uma conferência de imprensa de Bruno Lage que, ao fim de poucos minutos, se tornou um dos exemplos mais sintomáticos do desgoverno que hoje define o Benfica. Bruno Lage tentou desdramatizar tudo. 24 horas depois de anunciar à meia dúzia de adeptos em Rio Maior que ia «resolver esta m****», Lage conseguiu contribuir para o exato oposto.

À medida que vou assistindo a uma das aparições mais desastrosas de que tenho memória em televisão, sou relembrado de que ninguém obrigou Bruno Lage a estar ali naquele momento, de volta ao clube que, na noite anterior, caracterizara de forma destrutiva. Tenho sérias dúvidas de que Bruno Lage estivesse à espera de encontrar outro clube quando aceitou regressar. Reconheço-lhe mais inteligência. Talvez tenha sentido a confiança de que seria ele a mudar tudo, mas, evidentemente, as palavras ditas na garagem do estádio, assim como as que escolheu no dia seguinte, indicam claramente o contrário.

Ouço mais uns minutos da trágica conferência de imprensa e volto atrás. Percebo que a conferência destinada a esclarecer-me era, afinal, uma mão cheia de nada e outra com perguntas por responder. Quem é, afinal, o adepto Diogo que conversou com Bruno Lage? Como teve acesso ao estádio e porquê? Quem se responsabiliza por isso? Por que razão Lage não fez uma declaração inicial antes de responder aos jornalistas, e assim controlar a narrativa? Ninguém achou prudente garantir que assim fosse, por uma questão de proteção reputacional do próprio clube? Quem preparou esta conferência de imprensa? Será que alguém a preparou? Por que razão o presidente não está ao lado do treinador, escolhido convictamente há poucos meses, num dos momentos mais complicados da época? Não entende o presidente que deveria complementar qualquer intervenção do treinador num dia como este? Por que razão optou por assistir a esta situação como se fosse um mero espectador? Não perceberá o quanto aquela postura é ilustrativa de toda a sua forma de presidir ao clube? Será isto um sinal – aterrador, a dias de jogarmos em Turim – de que existe agora uma distância sanitária entre presidente e treinador após aquele episódio? O Benfica ainda tem um presidente? Bruno Lage ainda é, efetivamente, o treinador escolhido por esse presidente? Será que algum deles, ou ambos, acreditam que nada disto afeta o balneário? Quando é que este pesadelo acaba?

Um presidente ausente, um treinador desorientado, um projeto desportivo moribundo, um balneário posto em causa, uma comunicação absolutamente danosa, enfim, mais um fim de semana desastroso em que as principais vítimas são o Benfica e a sua reputação, os adeptos e a sua esperança em dias melhores. Podia continuar por aqui fora, mas vou fazer o contrário. Será isso ou continuar numa espécie de náusea existencial causada pelo estado do clube, que às vezes já me priva da alegria e do entusiasmo de ver o Benfica, que é, afinal, a coisa mais importante. Vou tentar suspender a descrença, fingir por instantes que os últimos dias não aconteceram, tapar os ouvidos às fugas de informação, evitar o tráfico de rumores no WhatsApp e esperar ansiosamente pelo jogo de amanhã.

Que ganhem em Turim e depois na Reboleira, que o futebol dentro de campo permita deixar este fim de semana vergonhoso para trás. Jogo a jogo, treino a treino, e talvez se apague da nossa memória como as mensagens que se apagam sozinhas no WhatsApp. Encontramo-nos do lado de lá, de preferência a tempo de celebrar umas vitórias, seguramente a tempo de pôr um fim definitivo a este desastre, seja lá quando forem as eleições. Por mim, eram já amanhã. Enquanto isso não acontece, vou convidar o leitor a assumir um compromisso comigo: vamos fingir, pelo menos até à próxima semana, que nada disto aconteceu. Talvez tenha mesmo sido a inteligência artificial a pregar-nos uma partida. Na dúvida, vamos por aí. Talvez assim consigamos ajudar o presidente a terminar o mandato com dignidade.

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