Arbitragem: sobre a aplicação da vantagem
'O poder da palavra' é uma página de opinião semanal do antigo árbitro Duarte Gomes
Os adeptos em geral não terão noção, mas para um árbitro a aplicação da vantagem é um dos momentos mais gratificantes na direção de um jogo de futebol.
Acompanhem o meu raciocínio, vestindo a pele daquele por instantes: vocês estão dentro das quatro linhas, a acompanhar em corrida constante todas as incidências do jogo. Bola pelo ar, cruzamento, lance dividido, contra ataque, remate perigoso, salto de jogadores à bola, tudo. De repente, percebem que há uma infração. Um atleta carrega outro de forma ilegal. Não têm dúvidas, a falta é clara. A primeira tentação, que obedece a um instinto imediato de tentar preservar aa verdade desportiva, é apitar! Apitar logo! É preciso fazer justiça e conceder à equipa do jogador que sofreu a carga um pontapé-livre.
Mas o que a lei recomenda é que se faça um compasso de espera. Recomenda que contenham esse impulso para perceberem se a não interrupção da partida pode ou não ser mais favorável à equipa lesada. Vão por mim, não é fácil. É aí que entra muitas vezes o fator experiência (quanto mais lances sucedem, mais se aprimora essa capacidade) e, claro, a importância do treino. Como disse em tempos um famoso golfista «quanto mais treino, mais sorte tenho».
Há no entanto alguns fatores a ter em conta para que essa premissa, a da aplicação da vantagem, seja colocada em prática. A primeira e eventualmente mais relevante é nunca confundi-la com mera posse de bola. A ideia subjacente à não paragem do jogo é que a equipa ganhe mais com isso do que com o recomeço decorrente da interrupção.
Se a bola continua na posse da mesma equipa, indo para o lado ou para trás, se vários adversários rodeiam o colega que depois fica com posse, se eventual jogada prometedora se perdeu porque o jogo não parou... não há benefício.
O importante é que o árbitro (e todos cá fora) façam a seguinte pergunta: quem sofreu a falta ganha mais com o assinalar de um pontapé-livre e respetiva paragem de jogo ou com a continuação da jogada?
Pontos importantes a considerar: se a bola segue para a frente, para mais perto da baliza adversária e para um colega do jogador carregado, que se encontra em ótimas condições para prosseguir o lance... a vantagem é bem aplicada. Mas se a bola recua por exemplo até à zona defensiva, onde estão atacantes adversários a pressionar tudo e todos, a infração é para assinalar.
Outras considerações relevantes: se a infração for demasiado dura ou susceptível de criar reações e animosidade, a decisão mais sensata é interromper o jogo, mesmo que sacrificando uma boa vantagem. Porquê? Porque a continuidade nessas condições pode promover confusões ou até agressões. De novo, pede-se sensatez e nteligência na condução de jogo.
O mesmo se aplica quando se percebe que a partida está a ferver, com demasiada intensidade e propensão para entradas perigosas. Dar demasiadas vantagens aí pode ser interpretado como "um convite à violência", que é a última coisa que um árbitro de qualidade deve avalizar.
Por fim, a questão das infrações perto das áreas adversárias. Se a falta for em zona prometedora, capaz de gerar um pontapé-livre direto perigoso, a não interrupção do jogo só se justifica se a vantagem for quase para golo. Isto porque hoje em dia as equipas têm executante de luxo (nas bolas paradas), que treinam até à exaustão esse tipo de lances.
Por fim, nos pontapés de penálti não deve haver vantagem, a menos que a bola esteja quase a entrar/ou mesmo a entrar na baliza de quem infringiu. O que o árbitro pode e deve fazer é retardar o apito, esperar um pouco, para ver se de facto a bola vai ou não para golo.
Como veem, esta ação de jogo tem mais que se lhe diga do que parece.
De cada vez que estiverem a ver um jogo ao vivo ou em casa, tentem fazer este exercício mental. Pensem se determinado lance devia valer vantagem ou paragem de jogo. Verão que é interessante ver a coisa nessa ótica.