A vida. Sempre e só

OPINIÃO28.03.202206:55

Pavão… Foé… Bruno Baião… Puerta… Jarque… Quintana… Neno. Tudo mortes estupidamente inesperadas e prematuras

ESTAVA um calor de ananases, como diria o bom do Eça, quando eu e o Miguel Nunes, a meio de junho de 2021, chegámos ao nosso hotel em Budapeste, depois de uma curta e rápida viagem a Gyor, vindos de conversa emocionalmente desgastante com o pai de Miklós Fehér. Era tempo de desgravar, escrever e enviar os textos para Portugal para tudo ser publicado no dia seguinte. Antes, porém, era tempo de descansar dez minutos em cima da cama, beber um pouco de água e serenar as emoções. Antes ainda do antes porém, a televisão do quarto foi ligada e, pelo meio de balbucios disparados em húngaro, aparecia a imagem de quatro enfermeiros e alguns jogadores dinamarqueses, entre os quais Schmeichel, Maehle, Poulsen, Kjaer, Delaney, Christensen e Wind, a fazerem espécie de guarda de honra a alguém inanimado. 

ENTRE dois ou três balbucios na única língua que o diabo respeita, como escreveu o enorme Chico Buarque, cheiinha de duplas consoantes e vogais com tremas, duas palavras estavam a ser constantemente repetidas: Christian Eriksen. Aliás, três: Christian Eriksen e szívroham. Algo que, vim a saber mais tarde, significava ataque cardíaco. Vi as imagens do incidente e voltei a sentar-me na cama. Uma das primeiras coisas em que pensei, provavelmente acossado pelo ego que cada um de nós possui, foi: «Porra, logo hoje que fui falar com o pai do Fehér?!». Ligaram-me, então, da redação a informar que, por motivos óbvios, a publicação da reportagem de Gyor ficaria adiada. Levantei-me da cama e dei meia dúzia de voltas ao meu quarto de Budapeste e, enquanto conversava com o Miguel Nunes, sucessivas imagens e nomes passavam pela minha cabeça: Pavão… Marc-Vivien Foé… Bruno Baião… Antonio Puerta… Daniel Jarque… Alfredo Quintana… Neno. Tudo mortes súbitas. E a de Neno, meu Deus, apenas 24 horas antes. Incrível série de coincidências. 

MINUTOS mais tarde, muitos minutos mais tarde, já o calor de ananases passara, soube-se, por entre palmas no Parken de Copenhaga, que, afinal, o forte szívroham não impedira que Eriksen tivesse regressado à vida depois de ter estado morto. Era, enfim, a celebração da vida após termos chorado a morte. Anteontem, em Amesterdão, na Arena Johan Cruyff, ao minuto 46 do Países Baixos-Dinamarca, Christian Eriksen voltou a entrar em campo vestindo a camisola dos Danish Dynamite. E o número 10 voltou a marcar um golo três minutos depois. Haverá celebração da vida mais forte, intensa e emocional do que esta? Há. Anteontem, num restaurante do Estádio da Luz, estive num almoço-convívio em honra do homem que me lançou no jornalismo: Manuel Arons de Carvalho. Tem um lugar muito especial no meu coração. Tal como o António Simões e o Joaquim Rita.