A última crónica
Precisamos de trabalhar para a estabilidade e paciência, mesmo sabendo que a tendência é para correr atrás de outras lebres
Sentido de pertença
Este compasso de espera que apanha repetidamente o início de cada verão, serve não só para fazer balanços e reforçar a reflexão sobre as coisas que correram menos bem, mas também, e sobretudo, para reiniciar as expectativas que naturalmente se criam no início de cada época. Quem tem dinheiro para gastar, às vezes de uma forma excessivamente ostensiva, tais são os valores de transação envolvidos na compra e na transferência de jogadores, consegue criar a ilusão de que vivemos tempos de abundância e de que as leis do mercado funcionam acima de todas as contrariedades. Pura ilusão. Mais, a este ritmo, e com os milhões dos multimilionários a acentuar a turbulência inflacionária, vamos a caminho de uma décalage cada vez maior entre os clubes ricos e os pobres ou remediados, sujeitando estes últimos às investidas incessantes dos refinados investidores, que numa boa parte das vezes não têm qualquer vínculo identitário nem com o clube nem com a cidade que o representa.
Sim, talvez seja uma inevitabilidade incontornável, e sim, talvez ao aceitarmos isto como regra, possamos descansar depois na premissa que dita que os menos abonados também beneficiam com o sistema. O sistema, como sabemos, tem muitas variáveis e muitas dependências, mas começa a ser desesperante perceber que em todas elas, a finança e a gula, como no Rei Ubu de Jarry, se sobrepõe a tudo, até ao que lhe dá sentido e valor, que é o desporto e a celebração comunitária.
Lembro-me de ter lido algures o depoimento de um ex-craque argentino (Fernando Redondo) revelando a sua profunda desilusão e o seu desinteresse pelo atual futebol, e pelo modo como ele hoje se mostra e se afirma. Não tenho nem saber nem aspiração suficientes para me pôr a discutir, com quem sabe verdadeiramente de tática e futebol, se na sua evolução, que é notória, não se foram esquecendo outros valores, que o tornaram apaixonante e menos permeável à cor do dinheiro? E agora, que estamos em tempo e em êxtase de Campeonato da Europa, talvez não seja despiciente lembrar a força do coletivo austríaco, com um selecionador que foi resistindo a outras investidas mais tentadoras, e que conseguiu mostrar que uma seleção não é só a soma de grandes jogadores. E que dizer da Geórgia, que nos sabotou a glória do pleno? Um coletivo de combate que superou as melhores expectativas? Não é preciso saber muito de futebol para perceber que afinal nem tudo está perdido.
Termino esta minha última crónica, com o meu Vitória, afinal de contas o maior responsável e o motor de motivação destas partilhas mais ou menos inconsequentes, e que neste arranque de pré-época sofre também bastante com o síndrome das indefinições, das saídas, das entradas, do sistema tático, e do caminho que nos espera fora de portas.
Teremos sempre a nosso favor um legado que junta o melhor disto tudo: uma paixão incomensurável, uma cidade e uma massa associativa altamente fiável e fiel e uma exigência que faz das dificuldades força e superação. Precisamos, no entanto, de trabalhar para a estabilidade e paciência, mesmo sabendo que a tendência é para correr atrás de outras lebres.
Uma última palavra de apreço para a redação de A BOLA, que me deixou dançar livremente por aqui, e para o meu companheiro de bancada, o André Coelho Lima, que ajudou a tornar ainda mais apetecível e extraordinário este sentido de pertença, literalmente! Bem hajam. Força, Vitória!
PS — Um último sinal de enorme admiração e estima pelo Manuel Fernandes, um extraordinário jogador e um homem bom. Um epitáfio que não é para todos.
Coluna de opinião de João Reis, ator e associado do Vitória de Guimarães