A moral da vitória

OPINIÃO19.04.202207:00

Sei que vou assistir a mais vitórias do Benfica em Alvalade, mas gostava que fossem obtidas com um estilo de jogo diferente

EU acho que percebo o conceito de campeões da vida. Penso que até já o expliquei aos meus filhos, por outras palavras, após um falhanço seu. Consigo reconhecer virtudes na circunstância que faz de alguém um vencedor para lá da ditadura dos resultados, em especial se sentir que o derrotado tentou até ao limite das suas capacidades e soube comportar-se no momento da derrota, aceitando a condição com humildade e vontade de voltar a tentar. Nem sempre parece, mas é aí que muitas vezes se formam as verdadeiras equipas, e é aí que se começa a ganhar o próximo jogo. É talvez por isso que a exibição da semana passada em Anfield frente ao Liverpool, na qual a superioridade da equipa da casa acabaria por se confirmar, não terá deixado nenhum benfiquista indiferente.
Fiquei com a sensação clara de que um pouco mais de competência - em dimensões que vão para além da preparação específica deste jogo - nos teria permitido discutir a eliminatória e seguir o mesmo caminho do Villarreal, mas não consigo retirar deste insucesso uma conclusão catastrofista. Sim, há motivos para nos orgulharmos. Esta foi daquelas noites em que perdemos uma eliminatória, mas ganhámos qualquer coisa. A equipa entrou em campo em desvantagem e saiu eliminada, mas só deixou Anfield depois de disputar cada palmo de relva com o adversário, depois de empolgar os adeptos e de os fazer acreditar, depois de deixar tudo o que tinha em campo. Da fúria do Darwin às lágrimas do Gilberto, houve Benfica. E quando tudo parecia terminado e já todos tinham deixado o campo, a equipa voltou para agradecer aos adeptos que ainda enchiam o estádio.
Talvez não tivesse salientado este jogo da Champions se os bons indicadores se limitassem ao jogo de Anfield. Felizmente houve mais motivos para sorrir. Se por um lado consigo apreciar o conceito de campeão da vida, nada é melhor do que ser vencedor a valer. Defenderei sempre a civilidade no desporto, mas há poucas coisas melhores do que encavar o adversário num dérbi, fazê-lo com mérito, e sentir essa alegria tão benfiquista que é proporcionar momentos de infelicidade aos adeptos do Sporting. Melhor só mesmo poder escrever tudo isso aqui. Obrigado a todos os intervenientes que tornam isto possível. Ponho de lado as minhas angústias benfiquistas por alguns momentos e celebro como se fosse a primeira vez, mesmo que seja a trigésima quarta vitória em Alvalade a contar para o campeonato.
O feito de domingo pode ser valorizado por alguns motivos. Primeiro, pela competência e eficácia demonstradas, por muito que me custe admitir. Eu explico. É que não gosto de ver o Benfica jogar encolhido frente ao Sporting. Do meu clube espero sempre que faça tudo para ter uma postura dominadora e de ascendente sobre o adversário. Tenho a certeza de que vou assistir a muitas mais vitórias do Benfica em Alvalade, mas gostava que fossem obtidas com um estilo de jogo diferente. Isto não é um debate sobre preferências estéticas. É uma exigência inscrita na identidade do Benfica. O Benfica não deve jogar como a equipa pequena que nunca foi. Espero que os decisores do clube deem prioridade a uma equipa técnica que privilegie o futebol de posse, a vertigem ofensiva, o adversário acossado e sem bola, em Alvalade ou seja onde for.
 

Darwin Núñez, aqui com Weigl, marcou o primeiro golo no dérbi de domingo em Alvalade, que o Benfica venceu por 2-0


Mas, enquanto se espera por notícias concretas sobre o futuro e ideias claras sobre o que esperar do Benfica na(s) próxima(s) época(s), estes três pontos souberam bem porque, apesar da postura defensiva, mostraram uma equipa capaz de assumir esse papel de forma convicta, apresentando níveis de concentração e combatividade que se exigem de uma equipa deliberadamente defensiva. Já vi um Benfica encolhido em jogos importantes, mas pouco competente a assumir essa postura. Não aprecio este estilo, mas se é para jogar assim, que o façamos de forma disciplinada e organizada. Jogámos à defesa, mas fizemo-lo para ganhar.
Feitas as contas, em nenhum momento o Benfica pareceu muito interessado em dominar territorialmente, e em nenhum momento abdicou de disputar o jogo, lidando de forma relativamente confortável com a frustração e a fraca inspiração dos jogadores do Sporting, em grande parte provocada pela nossa organização defensiva. Foi assim que a equipa acabou por chegar ao segundo golo, com alguma naturalidade. Venceu, e venceu bem.
Há um longuíssimo caminho pela frente, mas talvez não falte tudo. Vê-se uma faísca de competitividade que não esteve presente em muitos momentos importantes da época. Vê-se uma eficácia que é essencial manter até ao final do campeonato, e transpor para um novo modelo de jogo na próxima época. É difícil saber o que esperar quando parece certo que o treinador será muito diferente do atual e que o plantel vai sofrer grandes transformações, mas há uma confiança renovada, há uma atitude vencedora dentro de campo, e há mais resultados condizentes. Não foi o azar que nos impediu e não foram somente os fatores externos. A equipa está hoje mais forte. É aí que se ganha os jogos e a calar os adversários. É também por aí que passa, antes de mais, a capacidade de fazer respeitar o Benfica. Só depois vem o resto. É verdade que as arbitragens são assustadoramente incompetentes, é verdade que ninguém no nosso futebol português parece querer saber deste vírus que se alastra a todos os membros, é verdade que a mediocridade continua a ser premiada em Portugal, é verdade que a promiscuidade entre clubes tem de ser penalizada sem contemplações, e é também verdade que falta músculo à comunicação do clube em relação a todas estas matérias. Mas é bom chegar a uma terça-feira e poder falar primeiro do moral que as vitórias nos trazem, e só depois das vitórias morais. Agora, uma coisa é certa: é possível e desejável ser-se campeão no campo e na vida. Resta ao Benfica - em especial aos que hoje o representam - cumprir esse desígnio centenário de todas as formas possíveis.