A força do silêncio
Ouçam. Ouçam bem. Conseguem ouvir? Não? Concentrem-se, vá. Não ouvem mesmo? Pois. Nem eu.
Esta ausência de som, quase ensurdecedora, é deliciosa. É encantadora. É a força do silêncio no seu esplendor máximo.
O fenómeno não é novo. Não é de hoje nem de ontem. Aliás, repete-se todos os anos: depois de um longo período de histeria coletiva, o fim da época desportiva traz de volta a acalmia passageira.
É como se toda aquela efervescência descontrolada, que dura meses a fio, hibernasse. Assim. Do nada. De um momento para outro.
A diferença entre o grito tresloucado e a mudez prolongada está à distância de um apito. Do apito que encerra as contas do campeonato.
Essa drástica mudança de atitude não dura muito, é verdade, mas dura o suficiente para nos fazer pensar. Para nos fazer refletir.
Que força será essa que leva tanta gente boa a ter uma alteração comportamental tão súbita e radical? Fará sentido? Será normal?
Durante a época, muitos milhões de portugueses (e escolho falar só dos nossos) destilam ódio/gozo à porta dos cafés e barbearias, na fila do autocarro ou nas redes sociais. O seu estado de espírito depende se vão atrás e perderam o jogo ou se vão à frente e ganharam-no. Nisso, diga-se, até são coerentes: todos riem e ridicularizam. Todos explodem e vitimizam-se.
Esta pérola da nossa saúde mental devia ser analisada, ao detalhe e de forma séria, por especialistas competentes. Especialistas que, de preferência, não gostassem nem percebessem de bola, não vá o vírus apanhá-los também.
Que raio de efeito coletivo será este, que consegue promover tamanha disparidade de emoções, no ser humano? Como é que uma pessoa - seguramente boa profissional e bom chefe de família - pode descaracterizar-se tanto, por causa de uma derrota mal digerida, de um penálti mal assinalado ou de uma vitória do rival? O que levará alguém intrinsecamente normal a insultar, ameaçar e até agredir um igual, por causa de um mero jogo de futebol?
Será que haverá alguma explicação racional para isso? Serão apenas emoções descontroladas? Será falta de valores de base? Será sinal de menoridade intelectual? Será apenas patológico? Um dia gostava de perceber.
Enquanto homem, enquanto ser humano, também eu já sucumbi à efervescência da irrazoabilidade. Muitas e muitas vezes. Mas, quando isso aconteceu, foi momentâneo. Impulsivo. Reativo. Foi um instante infeliz e irrefletido, que não deu à razão tempo para o travar. Para o anular.
Diferente é ter a clareza de espírito de insultar alguém durante semanas. É chamar nomes e ofender alguém reiteradamente. Repetidamente. Todos os dias.
Diferente é acreditar que alguém nos quer prejudicar deliberadamente. É estar convencido de que parte do universo conspira para nos tramar.
Diferente é quando a azia é tanta que nos leva a escrever e responder a barbaridades nos facebooks da vida, vezes sem conta.
Isso não é falibilidade pontual nem latinidade. Isso é outra coisa qualquer, bem mais grave.
Para a próxima época, o que qualquer pessoa de bem espera é que os adeptos não se escudem nas más práticas de alguns responsáveis para justificar o seu comportamento desajustado. Se quem vem de cima não dá o melhor dos exemplos, cabe-nos a nós dá-lo. Não sejamos autistas, não descartemos responsabilidades.
O futebol é feito pelo povo. E o povo deve saber comportar-se com educação e respeito, com civismo e desportivismo. Se não for a razão... o que mais nos separá de todos os outros animais?