A demagogia!

OPINIÃO07.08.202003:00

Quer-me parecer, pelo que vou lendo e ouvindo, que há gente que por não gostar de Jorge Jesus (e todo o direito tem, toda a gente que seja, de não gostar de Jorge Jesus) fica tão exasperadamente descontrolada que mistura, com enorme facilidade, alhos com bugalhos, na ânsia de encontrar forma de justificar as críticas ao agora, de novo, treinador do Benfica. Confesso que não me é fácil de compreender.
Em vez de evitarem cair em inacreditáveis contradições, explicações mal-amanhadas e de revelarem tanta falta de conhecimento e informação e tão grande incapacidade de compreenderem o futebol, não seria bastante mais fácil dizerem, pura e simplesmente, que não gostam de Jorge Jesus?
Não seria mais fácil apontarem-lhe apenas a arrogância, ou o egocentrismo, ou dizerem que não gostam da forma de ser, de falar, de vestir ou mesmo de se pentear?
Vejamos o que, por aí, se vai dizendo de Jorge Jesus e deste seu regresso ao Benfica.
Diz-se que Jesus só serve para gerir crises, e por isso pelas equipas por onde passa só ganha no primeiro ano (ou, vá lá, com boa vontade também no segundo).
Absolutamente incompreensível. No Benfica, é verdade que Jesus ganhou logo no primeiro ano (foi campeão), mas depois só voltou a ganhar quatro anos depois, conquistando em Portugal tudo o que tinha para conquistar precisamente na quinta e na sexta épocas na Luz.
Foi pelo que fez na Luz em seis anos (com muitos mais pontos positivos do que negativos, evidentemente) que se tornou, na história, o treinador com mais anos consecutivos a treinar as águias e o mais titulado de sempre no maior clube português, devolvendo até o emblema às finais europeias (embora perdidas), como tinham conseguido (também derrotados) Eriksson e Toni.

Diz-se que Jesus é tão exigente, tão absorvente, tão pressionante que os jogadores só o aguentam, ou suportam, um ano (ou, vá lá, com boa vontade talvez dois).
Luisão esteve seis anos com Jesus e ainda hoje diz que foi o melhor treinador que teve. E disse-o longe de imaginar que voltaria a trabalhar com Jesus, agora do lado de fora do relvado.
Além dos resultados, são os jogadores, aliás, os únicos que podem realmente definir a qualidade de um treinador. E sobre Jesus, no caso do Benfica, nada melhor do que ouvir os jogadores que trabalharam com ele - ouçam o que dele disseram, por exemplo, Pablo Aimar, Saviola, Di María, Gaitán, Salvio, Artur Moraes, Júlio César, Jonas, David Luiz, Enzo Pérez, Ramires… além do já referido Luisão, tudo jogadores de peso, muitos deles com longas carreiras mesmo antes de se fixarem na Luz.
Outro brasileiro, Rafinha, chegou ao Flamengo após quase quinze anos no futebol alemão, com sete títulos de campeão no Bayern Munique, uma Liga dos Campeões, um Mundial de Clubes, uma Supertaça Europeia, três Taças da Alemanha e uma Supertaça da Alemanha, e 33 anos no bilhete de identidade.
Mesmo assim, ligou-se de tal forma a Jesus que disse dele o que disse: «Jesus é um treinador que marca a gente, é muito intenso a trabalhar, muito perfeccionista, muito exigente. O trabalho dele aqui foi f…, foi demais!»
Ainda muito recentemente, já com Jesus em Portugal, o mesmo Rafinha não resistiu a colar a imagem do treinador português à de Guardiola, com quem  - de forma inesquecível, segundo o próprio Rafinha - trabalhou, e jogou muito, durante três anos no Bayern Munique.
«Ele [Guardiola] é louco por futebol, completamente maluco por futebol… é como o Jorge Jesus, passam 25 horas por dia no campo!»

Diz-se  que Jesus não é treinador para projeto de médio prazo, apenas para projeto de curto prazo, para ganhar já, no imediato e nada mais.
Pois é, por isso é que esteve seis anos no Benfica (!!!) e nunca nenhum treinador ganhou tanto como ele, e talvez nunca, como nesses seis anos dele, o Benfica tenha conseguido, por tanto tempo, jogar um futebol tão competitivo, tão emocionante e tão entusiasmante, sobretudo na segunda metade do seu mandato de treinador, quando conduziu a equipa a duas finais consecutivas da Liga Europa, enfrentando alguns «match point» de verdadeira Liga dos Campeões, como aquela final de 2013 com o Chelsea, ou as meias-finais de 2014 com a Juventus.

Diz-se que é «inadmissível» que o Benfica (ou melhor, Filipe Vieira) tenha «apostado as fichas todas em Jesus», quando «saber gerir qualquer empresa é não apostar as fichas todas num só funcionário».
Primeiro: o futebol não é como uma empresa. Nem por sombras. O futebol só é como uma empresa até às contas. Das contas para a frente é paixão e emoção e sendo paixão e emoção mexe com coisas muito diferentes, profundamente diferentes, tão profundamente diferentes que até parece impossível que alguém o queira comparar à atividade da gestão empresarial.
Mas se quisermos mesmo comparar o futebol a uma empresa - e há, naturalmente, pontos em comum -, então deveremos ser intelectualmente sérios e perceber que também uma empresa se empenha e gasta o que puder e tiver de gastar para contratar um fantástico CEO com o objetivo de conseguir mais e melhor sucesso, e, nesse sentido, o projeto dessas empresas passa a ser o que for esse CEO - é isso que têm feito, e continuam a fazer, os maiores grupos económicos e empresariais do mundo, e é por isso que algumas transferências de CEOs custam verdadeiras fortunas.
O treinador é o CEO da mini-empresa que é o futebol, porque é dele que depende a gestão e condução de uma equipa de 25/30 homens, muitas vezes originários de mais de 20 países/culturas/línguas diferentes, uns mais mimados do que outros, uns mais egocêntricos do que outros, todos, no caso das melhores equipas, pagos e bem pagos. E é esse CEO/treinador que tem de pegar no grupo e conseguir dar-lhe harmonia, competitividade, química, ligação emocional, ambição, coragem, caráter, espírito combativo, tática, qualidade de jogo e suficiente energia coletiva para atingir o sucesso, sendo que o sucesso não pode ser ganhar tudo e muito menos ganhar sempre.
Imagina-se a dimensão da tarefa? É tarefa tão complexa e abrangente que não está, evidentemente, ao alcance de todos e nem todos  são suficientemente bons treinadores para a concretizarem com sucesso.

Diz-se, como se isso fosse um mal, que a partir de agora o «projeto do Benfica é Jesus e ponto final» na alegada  tentativa de se justificar que o Benfica «não tem projeto e como não tem projeto contratou Jesus».
Afirmação igualmente difícil de compreender e apenas compreensível à luz de quem não tem ideia do que é o futebol de mais alto nível.
O que é um projeto no futebol? O que são os projetos dos clubes - sobretudo dos que lutam pelos títulos - se não ter bons treinadores e bons jogadores para formarem equipas ganhadoras?
A par de ter bons jogadores, os projetos no futebol são o que são os treinadores.
Em Portugal, é assim no FC Porto de Conceição (depois das mal-sucedidas experiências com Lopetegui, Nuno Espírito Santo ou Paulo Fonseca foi preciso arriscar tudo na alma, caráter e espírito à Porto de Sérgio Conceição), ou no Sporting de Amorim (e o Sporting até pagou 10 milhões por ele), depois das apostas incoerentes, irresponsáveis e inconsequentes em treinadores que acabaram, provavelmente, por ser vítimas das circunstâncias como Keizer, Peseiro, Silas…
Mas é assim também no Liverpool de Klopp, no Manchester City de Guardiola, e no Real Madrid de Zidane, na Juventus, agora, de Sarri, ou no Tottenham de Mourinho.
Onde está o mal de o Benfica entregar a Jesus o projeto do futebol, ou o FC Porto a Sérgio Conceição e o Sporting ao jovem, e ainda mais inexperiente, Rúben Amorim?
No futebol, sempre foi, é e será assim. Não vale a pena recorrer-se à demagogia barata de querer justificar o injustificável, como se Vieira cometesse pecado ao apostar no projeto do Seixal, e voltasse a cometer agora o pecado de não continuar a apostar apenas no projeto do Seixal.
Preso por ter cão e preso por não ter. No futebol, mudam-se ciclos, mudam-se treinadores e mudam-se objetivos consoante as circunstâncias de se estar ou não a ganhar.
Nos últimos cinco anos, sem Jorge Jesus, portanto, Filipe Vieira apostou mais no Seixal e, dizem os números, fez bem, ou não fez? Não apenas continuou até a ganhar títulos (três vezes campeão nesses cinco anos) como fez o Benfica faturar quase 300 milhões de euros, só em vendas, que me lembro, de jogadores vindos do Seixal, como João Félix, Nélson Semedo, Renato Sanches, Victor Lindelof. Gonçalo Guedes, João Carvalho ou Hélder Costa.
Esse dinheiro, ao que parece, estruturou ainda mais o Benfica ao ponto de ter a situação financeira que os diferentes sócios (do clube e da SAD) podem testemunhar que o clube e a SAD têm.
Perdeu, porém, identidade na equipa de futebol, foi perdendo qualidade e capacidade de competir a grande nível, como também se prova pelas (desastrosas) últimas participações europeias.
E quer, também por isso, mudar, de novo, o ciclo. para voltar a ganhar dimensão desportiva, nacional e internacionalmente. E ganhar dimensão não é apenas vencer. É, também, convencer!
Jorge Jesus foi contratado porque o Benfica (e Vieira) reconhece o que talvez nunca tenha deixado de reconhecer, que Jesus é um grande treinador de futebol, capaz de motivar, de pôr a equipa a jogar grande futebol e a lutar para ganhar, a competir sempre para ganhar, e a recuperar a identidade, como disse Luisão, de entusiasmar, empolgar e dar tudo para ganhar.
Se há cinco anos, Filipe Vieira achava o contrário, agora pouco interessa. Só interessa no sentido em que desenvolveu o tal outro projeto, o de vender bem mais do que comprou, tendo até a sorte, apesar disso, de continuar a ganhar - mesmo sem Jesus, como já referi.
Hoje, o que interessará à maioria dos benfiquistas, creio, é o que Vieira pensa hoje, porque é ele o presidente, é ele que tem de tomar decisões, é ele que escolhe o treinador e assume, naturalmente, como sempre sucede, as consequências dessas decisões e dessas escolhas.
Jesus foi contratado porque Vieira acredita que só ele poderá levar a equipa aonde o Benfica deseja, de forma mais rápida - porque num clube como o Benfica nunca há tempo para se ganhar… -, mais eficaz, segura e determinada, e porque Jesus, enquanto treinador, conhece o Benfica como ninguém, conhece o presidente do Benfica como ninguém, conhece e identifica-se com Rui Costa talvez como ninguém, conhece Luisão talvez como só o presidente conhece, conhece ainda muito bem quatro dos mais importantes jogadores do atual balneário do Benfica (Jardel, Samaris, André Almeida e Pizzi) e boa parte da organização do futebol benfiquista, e, por fim, entre os que melhor conhecem o futebol português, talvez Jesus o conheça igualmente melhor do que ninguém!
Podia o Benfica, e Vieira, ter contratado outro treinador? Podia.
Mas não era a mesma coisa!