A conspiração

OPINIÃO26.06.202004:00

Ainda estou à espera que Bruno Lage se retrate. Já não acredito que o faça, sinceramente. Mas continuo à espera. O que Bruno Lage disse na sala de imprensa do Estádio da Luz, logo após a derrota com o Santa Clara, não é grave por atentar contra a dignidade de jornalistas - que estariam a aceitar, segundo Bruno Lage, promover um treinador a troco de almoços, jantares e viagens. Ou de treinadores de futebol - que estariam a aceitar pagar almoços, jantares e viagens para se verem promovidos. Ou até de dirigentes - que poderiam estar a intermediar ou a serem também protagonistas dessa alegada conspiração.

O que Bruno Lage disse é grave por insinuar, difamar, caluniar. O que o ainda treinador do Benfica fez foi um processo de intenções absolutamente inaceitável, fosse contra quem fosse. É grave, ainda, por tê-lo feito enquanto representante do Benfica e no exercício da sua condição de treinador profissional do Benfica.

Não o fez na mesa de um café. Ou numa conversa entre amigos. Disse o que não devia ter dito, no lugar onde nunca o poderia ter dito.

Pareceu incapaz de não perder a cabeça e deu clara ideia de não aguentar a pressão do que lhe está a suceder desportivamente - uma terrível e surpreendente sucessão de maus resultados, numa sequência de 12 jogos (nove dos quais para a Primeira Liga) com duas vitórias apenas. Sublinho: 12 jogos, 2 vitórias!!!

O que Bruno Lage disse na sala de imprensa da Luz seria grave em qualquer circunstância. Mas sabemos como, infelizmente, o futebol pode cegar as pessoas, e por isso, se o dissesse a ganhar talvez ainda recolhesse alguns louros, porque neste futebol de fanatismos e clubites agudas, o desprezo, a arrogância e a falta de caráter ainda ajudam ao sucesso. Mas não, Bruno Lage disse-o após perder na Luz com o Santa Clara por... clara incapacidade de ser melhor. E ao dizê-lo a perder, não ganhou nada do que eventualmente estivesse à espera de ganhar.

Não deu um tiro no pé; deu um tiro na cabeça!

Não gostaria, certamente, Bruno Lage que algum jornalista dissesse - ou escrevesse - que há no Benfica treinadores que andam a tentar pagar almoços, jantares e viagens para que digam bem deles. E teria toda a razão. Não se pode insinuar; nem caluniar; nem fazer qualquer processo de intenções; nem meter todos os gatos no mesmo saco. Ou se diz o que se diz pondo os nomes aos bois ou se está… calado!

Se Bruno Lage sabe mais do que disse, então que o diga. Se não sabe, peça desculpa. Só lhe fica bem. Já devia ter pedido. Ficava-lhe melhor.

Mas saberá Bruno Lage do que fala? Saberá Bruno Lage que os jornalistas vivem também das relações que estabelecem? Saberá ele que os jornalistas almoçam e jantam com pessoas com as quais estabelecem relações de maior ou menor confiança, mais profissionais ou mais pessoais, desde que sempre de acordo com o respeito pela ética e deontologia da profissão? Saberá Bruno Lage, no que diz respeito às relações no futebol, que tudo isso faz parte deste universo profissional em que todos nós, jornalistas, treinadores, dirigentes, jogadores, nos movemos?

Saberá Bruno Lage tudo isso? E saberá realmente do que fala ou limitou-se, como se lhe referiu o antigo dirigente do Benfica, Gaspar Ramos, a fazer, qual garoto irresponsável, uma afirmação absolutamente gratuita para disfarçar o não ter sido, mais uma vez, capaz de assumir qualquer responsabilidade (e muito menos qualquer erro) em mais um gritante insucesso da equipa?!

Não foram os jornalistas que marcaram quatro golos e derrotaram o Benfica na Luz. Não foram os jornalistas que tomaram as opções no Benfica ou foram responsáveis pela estratégia de jogo ou pelas substituições encarnadas. Nem são os jornalistas que fazem a química de uma equipa de futebol ou lhe provocam maior ou menor empatia com o treinador.

Bruno Lage aceitou treinar o Benfica, nas circunstâncias em que aceitou, e com as condições que aceitou. Se porventura vier a queixar-se de não lhe terem dado tudo o que eventualmente pediu ou alegadamente lhe prometeram, isso é um problema com que Bruno Lage tem de saber conviver como treinador de futebol. Não são os jornalistas os culpados de Lage conseguir ou não conseguir emancipar-se ao ponto de ser capaz de exigir.

Só Bruno Lage pode responder pela sua própria personalidade. E pelo seu perfil. E pela sua capacidade ou incapacidade de liderar uma equipa de futebol num clube com a dimensão do Benfica e conviver com tudo o que isso implica. Tal como diz Luisão do treinador Rui Vitória - que com ele o Benfica continuou a ganhar mas foi perdendo identidade - também a mim me parece que esta época o Benfica não foi nunca capaz de recuperar a identidade revelada na segunda metade da época passada.

O que Bruno Lage disse na noite de terça-feira não é possível deixar de considerar, realmente, grave, e, que me lembre, inédito, pelo menos na boca de um treinador do Benfica. Que me lembre, nenhum treinador do Benfica alguma vez desceu tão baixo na tentativa de aliviar fosse que pressão fosse.

Mas percebeu-se, também, que Bruno Lage estava demasiado afetado e que perdeu a cabeça e se desnorteou sob a pressão de mais uma derrota, e revelou toda a inexperiência de quem tem apenas ano e meio de futebol a doer, num clube gigantesco, onde ganhar ou perder faz uma diferença descomunal. Esperava, por isso, que umas horas depois, o treinador do Benfica fosse capaz de cair na realidade e, retratando-se, eliminasse a discussão sobre o caráter.

Mas o que vi, no dia seguinte, foi Bruno Lage perder uma bela oportunidade de dar a volta por cima, e sair, porventura, a ganhar alguma coisa, marcando uma conferência de imprensa para pedir eventualmente desculpa pelo que disse ou concretizar eventualmente o que deixou vergonhosamente insinuado.

Agora, pelos vistos à beirinha de deixar de ser oficialmente o treinador do Benfica, imagino que Bruno Lage já só possa reclamar os seus direitos contratuais. Sim, fica na história do Benfica como o treinador-relâmpago de mais notável sucesso e sai ainda como campeão nacional. Isso ninguém lhe tira. Mas é possível imaginar  que não deixe grandes saudades. E isso era o pior que lhe podia acontecer!

PS: Se Bruno Lage eventualmente se referia, na sua teoria da conspiração, ao possível regresso de Jorge Jesus ao Benfica, deve Bruno Lage compreender que Jorge Jesus não precisa seguramente de ser promovido com almoços ou jantares. Jorge Jesus só precisará de saber se o presidente do Benfica o quer mesmo (como parece que quer) ou não quer e se o Flamengo estará disponível ou não para o libertar. O resto é conversa. E se o futuro treinador do Benfica vai ser Jesus ou Marco Silva ou Jardim ou outro qualquer, só Luís Filipe Vieira o saberá. Estranho é que Vieira não tenha resolvido ontem a situação de Lage. Se não quer que Lage continue, era o que se exigia!