A certeza das dúvidas
Não deve haver nada mais fascinante para um árbitro (ou para um ex-árbitro) do que o seu esforço permanente em manter-se atualizado, sob o ponto de vista teórico. A sua necessidade de saber, na ponta da língua, a letra e o alcance das leis é algo imprescindível para o seu bom desempenho. Para o bom desempenho em campo (no caso do árbitro no ativo) e fora dele (no caso do ex-árbitro que agora é comentador, dirigente ou formador).
Mas esse desafio, não apenas profissional mas também pessoal, é muito mais complexo do que parece. É verdade que só existem dezassete regras escritas, mas também não deixa de ser verdade que há, para muitas dessas, um sem-número de diretrizes. Um sem-número de maneiras distintas de as aplicar dentro do terreno de jogo, no caso concreto. Isso acontece essencialmente por dois motivos: primeiro, porque grande parte das leis são dúbias e permitem várias interpretações; segundo, porque há e haverá sempre lances e situações de jogo que desafiam qualquer conhecimento, qualquer lógica enraizada, qualquer saber adquirido. É quando se chega a esse ponto - o tal do limbo e da dúvida - que as opiniões divergem e a doutrina divide-se.
Não há, da parte de quem faz uma ou outra interpretação, qualquer tipo de conflito pessoal ou profissional. Não há até quem diga a verdade ou quem minta. Quem saiba mais ou menos. Quem seja melhor ou pior. O que há são convicções firmes. São certezas pessoais baseadas na boa-fé daquilo que uns e outros acreditam.
Se pensarem bem, isso é o que também acontece cá fora, no mundo civil, onde tantas e tantas leis são interpretadas (por advogados, juristas e juízes) de maneira diferente. No caso do futebol, a lei mais tramada é a 11. A que regula o fora de jogo. É, acreditem, uma valente chatice. É certo que dela constam algumas questões factuais, cuja aplicabilidade prática não deixa dúvidas a ninguém. Exemplo: se um jogador está em posição de fora de jogo e toca/joga a bola (passada por um colega), tem que ser punido. Ponto final, parágrafo. Mas no que diz respeito à interferência de um atacante (em posição irregular) na ação do defesa, a coisa complica e de que maneira. E complica de tal forma que há lances/situações de jogo que jamais merecerão consenso por parte de quem está, de facto, dentro do assunto.
A letra da lei ali é algo ambígua. Fala em «interferir», «ações óbvias» e «impactos claros», o que - em função de cada caso - poderá dizer muita coisa ou não dizer rigorosamente nada. Isso porque meio metro, um mero sopro ou uma palavra para distrair podem fazer toda a diferença na punição ou não punição dessa posição. Isso aconteceu este fim de semana por cá mas não só: em Inglaterra, Sterling foi apanhado pelo VAR em posição ilegal por... 2 cm. Nesse momento, ele deslocava-se a uma velocidade próxima dos 25 km/h. As câmaras da Premier League têm 50 frames por segundo. Isso significa que ele percorreu aquela distância em apenas 0.02 seg, o que - segundo os peritos - o colocou em fora de jogo na câmara B e em posição legal na A. Percebam o dilema do videoárbitro e a loucura de tudo isto. Não há milagres. Nem em campo e (nem sempre) com o auxílio da tecnologia.
A moral desta história é simples: não há verdades absolutas. Haverá, nestes casos, análises bem intencionadas, boa vontade em explicar, tentativas honestas em esclarecer. A tolerância e o respeito para decisões-limite como estas (e outras) são fundamentais para dar tranquilidade a quem tem que decidir, opinar, dirigir ou formar. São, sobretudo, fundamentais para a valorização do jogo enquanto espetáculo bem maior do que uma decisão impossível.